Durante uma eternidade, creio, habito
sonhos. Por séculos participo da vida, desejos e medos de pessoas que nunca
conheci, existo nesta região entre o ser e o nada. Imortal, busco a
mortalidade, pois a solidão de um espectro chega a ser palpável.
Todo este tempo, esta infinita sequencia
de momentos, percorro vastidões imensas de vazios, como desertos, a procura de
alguém que queira sonhar-me. Por vezes o desespero alcança-me, qual uma
desgraça, e contra a vontade do sonhador, invado sonhos. Nessas horas sinto-me guerreiro a frente de
uma batalha, e como guerreiro, procuro a vitória, procuro derrotar este
tormento que é existir e ser ignorado, a possível eterna solidão, o inferno de
tantas crenças. Nestas investidas comporto-me como bárbaro: destruo, com armas
ou com minhas mãos de urso; amo, uma mulher ou um amanhecer; odeio, causo
terríveis pesadelos ou prazerosos tormentos.
Exercito todas as fraquezas e virtudes humanas que tanto busco.
Mas, passados estes acessos, procuro ser prático,
preocupo-me em encontrar quem queira sonhar-me, o que já me aconteceu várias
vezes, milhares, talvez milhões, na verdade, embora ainda, e infelizmente, não
de uma maneira definitiva.
Dão-me forças estas experiências em que estive perto de
ser sonhado, em detalhes, o que é absolutamente necessário. São essenciais os
detalhes. Da cor dos meus olhos aos pelos que cobrirão meu corpo; do meu
sorriso à maneira de fechar as pálpebras quando durmo. Durante muito tempo
aprendi a me ver primeiramente, não adiantava, pois, como já me acontecera,
investir em sonhos se eu próprio não me via inteiramente e, portanto, não me
apresentava ao sonhador em minha plenitude, tal uma manhã que persistisse em
existir durante a noite.
Atualmente habito os sonhos de um velho e de seu filho
adolescente. Os velhos e os moços têm, em geral, o dom de desejar mais do que
aqueles, que algo possuem um destino a ocupar-lhe os sonhos: jovens guerreiros centrados
em suas batalhas; aedos em busca, unicamente, do amor de uma musa; ou os bêbados
às suas garrafas.
O que ocupa a vida deste velho de olhos fundos, pele seca
e as mãos ainda firmes é relembrar a juventude, o tempo em que as intempéries
não o incomodavam, ou melhor, não o venciam. Quando o seu corpo e seus desejos
agiam juntos como o mar e as ondas, tal qual acontece ao seu filho, em que
tanto pensa e admira, apesar de lhe dedicar pouquíssimo do seu tempo; o mesmo
que seu avô ao velho fizera.
Nos sonhos do velho passo-me por ele, e nestes exercícios
tenho que ocultar-lhe o seu próprio aspecto; deixo que sua memória apresente-me
o mundo que ainda não senti, deixo que sua experiência guie-me por desertos,
guerras, amores, rancores e vinganças, que me apresente aos sentimentos que
nortearam sua vida, mas, principalmente, que o velho me veja, conheça-me, se
acostume a mim como algo real, que me observe os detalhes e deseje que eu
exista.
Quanto ao filho do velho, apenas habito os seus sonhos
sem preocupar-me que me deseje como ser vivente. Na maioria das vezes, por pura
brincadeira, sou seu comparsa em aventuras ou seu companheiro em outras
empreitadas. Busco assim conhecer o homem jovem e o homem velho, poder enfim
decidir, entre ser, ou não ser, o que desejar: um monge ou um assassino; um
crente ou um ateu; um empreendedor ou um mecenas; um liberto ou um escravo; um
opressor ou um oprimido, mas antes de tudo ser, em toda plenitude, o que me
propuser.
Sinto, depois de séculos e séculos, que os sonhos do
velho sejam a última etapa de minha peregrinação, estarei próximo à cidade
sagrada? Há forças que já possuo.
Percebi inicialmente que podia respirar e, como um prisioneiro que
percebe a porta do seu cárcere escancarada, experimentei o ar, sofregamente,
sedento, e os meus pulmões encheram-se de força e de alegria. Apesar da dor inicial
muito me emocionei com o impulso que me chegou. Sou filho e pai de mim mesmo.
Atemoriza-me um pouco notar que o velho sofre de crise de
asma cada vez mais constante e que associo – tenho que admitir a realidade,
embora ela revolte-me por ser injusta – a sua debilidade ao meu vigor. Exerço
sobre ele a força de um vampiro sobre sua vítima, percebo que lhe sugo as energias
e recordo de outros sonhadores como se tudo fosse um mesmo pesadelo, uma roda
do destino, o horror!
Na noite passada desesperei-me. Assim que pude
movimentar meu braço esquerdo, o velho acordou com dores, seu filho e a moça
com quem dorme e mora há algum tempo, puseram-lhe compressas e ministraram-lhe
chás, bálsamos, mas seu braço ficou imóvel, paralítico. Nada pude fazer, não
mais controlo o meu nascimento... Creio, na verdade tenho certeza, que o mesmo não
mais acontecerá, mais uma vez, mas uma vez... À primeira batida de meu coração,
parou o coração do velho e, incompleto, volto à minha peregrinação, espectro
insaciável, morte – como me chamam alguns, a sedenta, a indesejável.
(Itárcio Ferreira)
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