Aos Mestres, com carinho!

Aos Mestres, com carinho!
Drummond, Vinícius, Bandeira, Quintana e Mendes Campos

domingo, 30 de julho de 2017

O argumento adamantino


Na Ivo Leão, uma moça monta seu escritório na calçada, à sombra de um belo alfeneiro carregado de bagas roxas. Ela também é bela. Tanto quanto a árvore debaixo da qual decidiu trabalhar. Mas árvore e mulher, todos sabem, têm belezas diversas. Para distingui-las, basta olharmos os homens que vêm passando pela rua, a pé, sob o sol de inverno, voltando do almoço à firma.
A beleza da árvore os apazigua; a da mulher os aparvalha. Assim, a visão de uma mulher bonita junto a uma bela árvore condena estes homens a um momento de confusão mental. Desconcertados, observam o quadro sem apreendê-lo direito. É como se temessem a aparição, entre os galhos do alfeneiro, de um terceiro personagem, astuto e sibilante.
Mas é óbvio que na Ivo Leão não há serpentes. Apenas esta moça, sentada a uma mesa sob a árvore, e estes homens que passam por ela. A mesa é branca, de plástico, e faz conjunto com duas cadeiras. Uma delas está vaga, à espera de alguém, qualquer um. A outra, adivinha-se, é ocupada pela própria moça. Ela cruza as pernas de maneira discreta e atraente. Entrelaça as mãos e as abandona sobre o colo. Encolhe os ombros e o pescoço, traindo o friozinho que sente por estar assim, em repouso, à sombra invernal de um alfeneiro.
Os homens, por sua vez, passam ao sol, acalorados. Sobre a mesa, diante da moça, notam uma garrafa de água e dois copos. E esse arranjo — bebida, sombra e mulher — os faz sentir sede, preguiça e desejo, os remete à atmosfera relaxante de um bar no litoral. Conforme já adiantamos, porém, trata-se de um escritório, e não de um bar. Nota-se pela papelada que também se vê na mesinha, folhetos decerto importantes. Se não o fossem, não estariam ali, pois é justo deduzir que ninguém no mundo portaria tantos papéis se estes não lhe parecessem essenciais.
Mas isso não é tudo. Há mais, e não somente a sombra, os folhetos, a água e a moça debaixo do alfeneiro. Há uma placa, pendurada em seu caule. Um anúncio que revela aos homens circundantes as reais intenções da bela mulher. Ela é uma vendedora. E está aqui para vender planos crematórios. Sentar-se com ela, portanto, e beber com ela, e conversar com ela à sombra desta árvore aprazível, é também mostrar-se disposto a encarar a própria morte.
Assim, os homens passam pela Ivo Leão e não param jamais. Sou um homem, e estou entre eles. Tenho vontade, admito, de me sentar na cadeira vaga, diante da moça, e vadiamente discorrer, em sua fresca companhia, sobre a minha mortalidade. Mas, sendo casado, e sobretudo sensato, penso que isso talvez não pegue bem. E se um conhecido me flagra ali, bebericando em horário comercial, discutindo o desnudamento final do meu corpo com uma bela jovem, sob as roxas emanações de um alfeneiro?
Declino da oportunidade e sigo adiante, desejando à moça uma boa tarde. Só não resisto à fantasia de elaborar, enquanto me afasto, uma hipotética transação entre nós. Primeiro, eu pediria à vendedora que me convencesse quanto às vantagens de lhe confiar a incineração completa de minha pessoa. Estou certo de que ela desfiaria diante de mim os seus melhores e mais sedutores argumentos, financeiros, ambientais e até mesmo espirituais. A cremação, ensinaria, elimina as partes inferiores do ser, liberando de forma limpa e imediata o pouco que em nós ainda resta de sublimável e passível de elevação.
Mas nenhuma dessas propostas seria capaz de me comover, e a vendedora partiria para o tudo ou nada: o argumento adamantino. Se me interessasse, diria ela, enchendo pela quarta vez o meu copo, eu poderia ser transformado num diamante azul. E então, é claro, fecharíamos negócio e brindaríamos ao infinito. Para isso, eu juntaria o dinheiro que fosse preciso. Eu seria, no futuro, um diamante azul, uma dura e inútil transparência.

sábado, 29 de julho de 2017

Teresa, poema de Manuel Bandeira


A primeira vez que vi Teresa
Achei que ela tinha pernas estúpidas
Achei também que a cara parecia uma perna

Quando vi Teresa de novo
Achei que os olhos eram muito mais velhos que o resto do corpo
(Os olhos nasceram e ficaram dez anos esperando que o resto do corpo nascesse)

Da terceira vez não vi mais nada
Os céus se misturaram com a terra
E o espírito de Deus voltou a se mover sobre a face das águas


Manuel Bandeira

Carl Sagan - "Uma Fábula Reconfortante"

Armando Manzanero - "Me vuelves loco"



sexta-feira, 28 de julho de 2017

Não sei dançar, poema de Manuel Bandeira


Uns tomam éter, outros cocaína.
Eu já tomei tristeza, hoje tomo alegria.
Tenho todos os motivos menos um de ser triste.
Mas o cálculo das probabilidades é uma pilhéria...
Abaixo Amiel!
E nunca lerei o diário de Maria Bashkirtseff.

Sim, já perdi, pai, mãe, irmãos.
Perdi a saúde também.
é por isso que sinto como ninguém o ritmo do jazz-band.

Uns tomam éter, outros cocaína.
Eu tomo alegria!
Eis aí por que vim assistir a este baile de terça-feira gorda.

Mistura muito excelente de chás...
Esta foi açafata...
- Não foi arrumadeira.
E está dançando com o ex-prefeito municipal.
Tão Brasil!

De fato este salão de sangues misturados parece o Brasil...
Há até a fração incipiente amarela
Na figura de um japonês.
O japonês também dança maxixe:
Acugelê banzai!
A filha do usineiro de Campos
Olha com repugnância
Para a crioula imoral.
No entanto o que faz a indecência da outra
É dengue nos olhos maravilhosos da moça.
E aquele cair de ombros...
Mas ela não sabe...
Tão Brasil!

Ninguém se lembra de política...
Nem dos oito mil quilômetros de costa...
O algodão do Seridó é o melhor do mundo?...Que me importa?
Não há malária nem moléstia de Chagas nem ancilóstomos,
A sereia sibila e o ganzá do jazz-band batuca.
Eu tomo alegria!

Manuel Bandeira

A arte de Katsushika Hokusai (2)










Via Katsushika Hokusai/Domínio Público

Pablo Milanés - "Canción por la Unidad Latinoamericana"

quarta-feira, 26 de julho de 2017

A arte de escrever crônicas




Já notaram como o brasileiro é um mestre na arte de escrever crônicas? Temos uma habilidade inata de expressar opiniões sobre os mais variados temas, alguns bastante complexos, de uma forma leve e bem-humorada em poucos parágrafos. A crônica é um texto que, por mais interessante que seja, já nasce predestinado a uma breve existência nos meios de comunicação impressos ou digitais, além da ameaça de se tornar precocemente datado, devido à velocidade do noticiário atual, principalmente no campo político, onde novas revelações mudam as expectativas e opiniões polarizadas do grande público em poucos dias ou até mesmo horas.

O que dizer então das colunas de crônicas semanais, onde o autor tem a responsabilidade de capturar a atenção do exigente leitor, rivalizando com a injusta competição da televisão, redes sociais e, mais recentemente, dos famigerados grupos de WhatsAppp que produzem uma enxurrada de notícias sem o menor compromisso com a veracidade, mas que fisgam o inadvertido usuário pelo apelo sensacionalista. Definitivamente não é uma atividade fácil para qualquer escritor. Na verdade, requer, cada vez mais, técnica, imaginação e originalidade.

Para os autores contemporâneos, portanto, torna-se um desafio ainda maior manter o nível de gerações passadas de grandes escritores que acabaram criando a tradição e um público leitor cativo, gênios como: Machado de Assis, João do Rio, Lima Barreto, Manuel Bandeira, Cecília Meireles, Rubem Braga, Rachel de Queiroz, Carlos Drummond de Andrade, Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino, Nelson Rodrigues, Millôr Fernandes, João Ubaldo Ribeiro e Luis Fernando Verissimo, para citar apenas alguns poucos nomes mais consagrados.

Contudo, a crônica persiste com uma força criativa que expressa o inusitado casamento do jornalismo com a literatura, fato que não consigo identificar em outros países. Será que o gênero, na sua efêmera informalidade, reflete o espírito de "jogar conversa fora" do brasileiro? Os textos em primeira pessoa, geralmente mais opinativos do que informativos, geram uma atmosfera de identificação entre autor e leitor. O amigo Emerson Lopes me indicou recentemente o cronista Luís Henrique Pellanda da Gazeta do Povo do Paraná, vale a pena ler este exemplo de uma crônica que é pura poesia, um estilo muito original.

Meu coração...


Josyara - "Cabum Tibum"

terça-feira, 25 de julho de 2017

A poesia de Ñasaindy Barrett, filha da eterna Soledad


Todo o mundo agora pode conhecer o livro “Do que foi pra ser Agora”, a poesia que a ditadura brasileira gerou contra a sua vontade. Os cristãos diriam que é uma bênção o lançamento do livro pela Editora Mondrongo, do editor e poeta Gustavo Felicíssimo. Mas eu digo que é poesia e verdade, no sentido de Goethe. E nesse caso, de resistência e vida também. Entendam por quê. 
A poetisa Ñasaindy Barrett de Araújo é a única filha de Soledad Barrett, a guerreira de quatro povos assassinada no Recife em 1973. Ñasaindy nasceu em Cuba, por força da militância política dos pais,. Soledad Barrett Viedma, paraguaia, e José Maria Ferreira de Araújo, brasileiro. Ambos foram assassinados pela repressão no Brasil. Ele em 1970, em São Paulo depois de preso e torturado. Soledad Barrett em 1973, no Recife, delatada pelo companheiro, o militante infiltrado Cabo Anselmo.
Ñasaindy chegou ao Brasil em 1980, com 11 anos de idade. E viveu entre o choque das diferenças culturais e políticas, mais as dificuldades encontradas por não ter documentos. “Eu era órfã, estrangeira, rebelde e fantasma”, contou um dia. Compreendam. O curto recorte biográfico é necessário, porque a poesia é mais que o poema, sempre. A vida foi presenteada a Ñasaindy como um destino inescapável, como um fruto complexo da sua genética, personalidade e formação. Pois Ñasaindy Barrett de Araújo é a filha do tempo, dos anos mais difíceis da ditadura brasileira. E de tal modo, que a poetisa se perguntar numa poética irônica, numa pergunta que é também de todo jovem hoje no Brasil:
 “E o chip, dentro de nós.
Quem foi que implantou?
O que me faz sonhar?
O que me faz chorar?”
Assim posto, chegamos à hora da poesia pelos poemas, somente pelos poemas, se tal arbitrariedade é possível. Mas tentemos a proeza. Tento e fico a meio caminho, porque a poesia de Ñasaindy nos fala:
“Os homens ainda amam
mesmo na angústia e na dor”.
Não é verdade? Pois de quanta dor, impureza e anormalidade se faz o mais límpido lírio dos campos? E se queremos ficar no reino do poético porque poético só poético, acompanhem a poesia linda, madura e fina que há nestes versos
“Percorre induzida a borboleta seu percurso.
Encontra-se pousando em uma hortênsia azul”.
E não resisto, ao fim, de comparar uma sensibilidade poética que descende em linha direta do que li antes, quando pesquisava sobre a heroína de quatro povos, que recriei em meu livro “Soledad no Recife”. Vejam este documento, uma estrofe dos últimos versos escritos por Soledad Barrett:
“Mãe, não sofras se não volto

me encontrarás em cada moça do povo
deste povo, daquele, daquele outro
do mais próximo, do mais longínquo
talvez cruze os mares, as montanhas
os cárceres, os céus
mas, Mãe, eu te asseguro,
que, sim, me encontrarás!“

A primeira vez em que li esse belo e último poema de Soledad Barrett, escrevi: “Agora vocês entendem a estética que é uma ética e uma profecia em um só poema. A vida que veio depois mostrou esse poema como uma canção de despedida”. Fui precipitado. A canção de Soledad, que se tornou impossível de ser desenvolvida em 1973, ressurge na poesia do livro da sua filha. De modo particular, podemos dizer que existe uma alma semelhante à estética de Soledad Barrett na poesia de Ñãsaindy Barrett de Araújo. Olhem estes versos do livro e o que suas linhas lembram:
“Entre todas as gentes,

sei que tenho um irmão.
E é porque sinto suas dores,
que mesmo sem ter olhos alegres,
mesmo sem ver a verdade ausente
sei que a luz está presente. “

Enfim, “Do que foi pra ser agora” é mais que um livro. Ele é um acontecimento de importância social, uma ordem da vida e renascimento. Como tão bem está escrito em uma de suas páginas: “A chuva caiu tão bela quanto foi a sua espera.” Assim é o livro da filha de Soledad Barrett. Na poesia, a autora alcançou o próprio nome: Ñasaindy Barrett de Araújo, poeta. Sinto que os longos dias de exílio e desencontros deram a Ñasaindy este presente: “Do que foi pra ser agora”. Em pré-lançamento da Editora Mondrongo http://www.mondrongo.com.br/index2.php?pg=noticia&id=144
Toda a gente do Brasil merece conhecer.

Carminho - "Saia Rodada"

segunda-feira, 24 de julho de 2017

Convite, poema de José Paulo Paes



Poesia 
é brincar com palavras 
como se brinca 
com bola, papagaio, pião. 

Só que 
bola, papagaio, pião 
de tanto brincar 
se gastam. 

As palavras não: 
quanto mais se brinca 
com elas 
mais novas ficam. 

Como a água do rio 
que é água sempre nova. 

Como cada dia 
que é sempre um novo dia. 

Vamos brincar de poesia?

José Paulo Paes

A arte de Jay Wenstein 2 - (“Então eu pedi para eles sorrirem”)









Mozart - "Lacrimosa"

sábado, 22 de julho de 2017

ALLENDE, poema de Mario Benedetti



Para matar o homem da paz
para golpear sua fronte limpa de pesadelos
tiveram que se converter em pesadelo
para vencer o homem da paz
tiveram que congregar todos os ódios
e também os aviões e os tanques
para derrotar o homem da paz
tiveram que bombardeá-lo fazê-lo chama
porque o homem da paz era uma fortaleza

para matar o homem da paz
tiveram que desencadear a guerra turva
para vencer o homem da paz
e calar sua voz modesta e perfurante
tiveram que empurrar o terror até o abismo
e matar mais para continuar matando
para derrotar o homem da paz
tiveram que assassiná-lo muitas vezes
porque o homem da paz era uma fortaleza

para matar o homem da paz
tiveram que imaginar que era uma tropa
uma armada uma legião uma brigada
tiveram que acreditar que era outro exército
mas o homem da paz era tão somente um povo
e tinha em suas mãos um fuzil e um mandato
e eram necessários mais tanques mais rancores
mais bombas mais aviões mais desonra
porque o homem da paz era uma fortaleza

para matar o homem da paz
para golpear sua fronte limpa de pesadelos
tiveram que se converter em pesadelo
para vencer o homem da paz
tiveram que se unir para sempre à morte
matar e matar mais para continuar matando
e condenar-se à blindada solidão
para matar o homem que era um povo
tiveram que ficar sem o povo

Mario Benedetti

Tradução de Lucas Bronzatto

Quilapayu - "Allende"

sexta-feira, 21 de julho de 2017

Rondó para você, poema de Mário de Andrade


De você, Rosa, eu não queria
Receber somente esse abraço
Tão devagar que você me dá,
Nem gozar somente este beijo
Tão molhado que você me dá...
Eu não queria só porque
Por tudo que você me fala,
Já reparei que no seu peito
Soluça o coração bem feito
De você

Pois então eu imaginei
Que junto com esse corpo magro,
Moreninho que você me dá,
Com a boniteza a faceirice
A risada que você me dá
E me enrabicham como o quê,
Bem que eu podia possuir também
O que mora atrás do seu rosto, Rosa,
O pensamento, a alma, o desgosto
De você.

Mário de Andrade

Larissa Luz - "Bonecas Pretas"

terça-feira, 18 de julho de 2017

Psicologia de um vencido, poema de Augusto dos Anjos


Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênesis da infância,
A influência má dos signos do zodíaco. 

Profundíssimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância…
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco. 

Já o verme — este operário das ruínas —
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,

Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há-de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!

Augusto dos Anjos

Tchaikovsky - "Valsa das flores"

segunda-feira, 17 de julho de 2017

O tigre, poema de William Blake


Tigre, tigre que flamejas
Nas florestas da noite.
Que mão que olho imortal
Se atreveu a plasmar tua terrível simetria?
Em que longínquo abismo, em que remotos céus
Ardeu o fogo de teus olhos?
Sobre que asas se atreveu a ascender?
Que mão teve a ousadia de capturá-lo?
Que espada, que astúcia foi capaz de urdir
As fibras do teu coração?
E quando teu coração começou a bater,
Que mão, que espantosos pés
Puderam arrancar-te da profunda caverna,
Para trazer-te aqui?
Que martelo te forjou ? Que cadeia?
Que bigorna te bateu ? Que poderosa mordaça
Pôde conter teus pavorosos terrores?
Quando os astros lançaram os seus dardos,
E regaram de lágrimas os céus,
Sorriu Ele ao ver sua criação?
Quem deu vida ao cordeiro também te criou?
Tigre, tigre, que flamejas
Nas florestas da noite.
Que mão, que olho imortal
Se atreveu a plasmar tua terrível simetria?
William Blake
Tradução de Ângelo Monteiro

Karol Conka - "Lalá"

Para refletir (91)


domingo, 16 de julho de 2017

A decadência da poesia


A poesia não se vende e, portanto, não tem mais importância. É claro que esse gênero literário não é o único que perdeu “fatias de mercado” na cena cultural atual.

Por: Jacques Roubaud
3 de janeiro de 2010
A situação
No século XXI, agora solidamente estabelecido, a poesia continua a perder espaço: nos jornais – o Le Monde des livres, suplemento literário do diário francês Le Monde, pode passar um ano inteiro sem publicar resenhas de livros inéditos de poesia contemporânea; nas livrarias, que, na maioria, não contam mais com uma seção dedicada a obras desse gênero; e na televisão, que tampouco se interessa pelo assunto. Uma espécie de incômodo impedia, até pouco tempo, as autoridades culturais de tirar proveito desse fato social. Mas elas finalmente se deixaram levar, talvez sem perceberem.
Essa situação é uma consequência da quase inexistência econômica da poesia – pelo menos dessa que se escreve atualmente. A poesia não se vende e, portanto, não tem mais importância. A poesia não tem mais importância e, portanto, não se vende. É claro que esse gênero literário não é o único que perdeu “fatias de mercado” na cena cultural contemporânea. O romance, a literatura em geral e o próprio livro foram afetados. Mas, no caso da poesia, estamos diante de uma forma extrema de desaparecimento.
De quem é a culpa?
Há quase um século – e com uma obstinação tocante – a responsabilidade por tal circunstância é atribuída aos próprios poetas. Expõe-se uma série de acusações para explicar e justificar a desafeição comercial: os poetas contemporâneos são difíceis, elitistas, a poesia é uma atividade fora de moda e ultrapassada. Os poetas são narcisistas, não se dão conta do que realmente acontece no mundo, não intervêm para libertar reféns ou para lutar contra o terrorismo, não fazem diminuir a desigualdade social, não se mobilizam para salvar o planeta e não falam a mesma língua de todo mundo. Eis porque não os lemos. Eles mesmos são os culpados por isso.
É inútil comentar tais acusações. Digamos apenas que quem se interessa por poesia, geralmente conhece e gosta de Victor Hugo, Baudelaire, Rimbaud, Apollinaire, Eluard, Aragon, Char e Michaux, por exemplo, mas acha que os poetas de seu tempo são difíceis, escrevem de maneira incompreensível e, assim, não os lê. Parece que esses leitores estão na mesma situação de alguém afetado por uma grave doença e que, depois de ficar um mês na cama, enfrenta grandes dificuldades para permanecer em pé. Ou seja, lemos cada vez menos e o que, por acaso, tentamos ler, parece impenetrável.
O Verso Internacional Livre
A situação descrita acima teve efeitos diversos sobre os poetas. A primeira consequência foi precipitar uma evolução formal, que está em andamento há muito tempo. Houve o verso livre padrão dos surrealistas, que substituiu o verso metrificado-rimado tradicional, sua demolição pela vanguarda dos anos 1960 (Denis Roche) e a conversão, bastante difundida, ao Verso Internacional Livre, importado, como tantos outros produtos, dos Estados Unidos. O VIL é um verso não metrificado nem rimado e que, geralmente, ignora as características da tradição poética de determinada língua. Ele “muda de linha”, fugindo às rupturas sintáticas demasiado fortes. Podemos fazer VIL em quase todas as línguas. Qual é a vantagem? Evitar, sem grande dificuldade, as terríveis “taxas alfandegárias da tradução”, que desencorajam os editores e os tradutores, e escapar do confinamento nas “fronteiras do dialeto”, algo temível na era da globalização.
O VIL ainda é muito presente na cena poética mundial, em todo festival internacional de poesia, toda antologia poética ou revista literária. Suas exigências protocolares são demasiado débeis, o que promove um deslizamento cada vez mais claro em direção a uma fase (a última?) da evolução formal: aquela em que o próprio verso não é mais considerado necessário. Já havia essa tendência – nos anos 1990, eu a constatei muitas vezes – de desaparecimento do verso, presente em grande número de poetas, que liam seus poemas como prosa, ornada retoricamente pela voz, pois é preciso ver que se trata de poesia. Nessas condições, por que não escrever simplesmente prosa? A poesia, então, e isso é particularmente perceptível nos poetas que mais se destacam na França ou nos Estados Unidos, se faz com prosas curtas, mas não visivelmente narrativas: a ausência de uma trama narrativa clara é, assim, o único indicador de que o texto pertence ao gênero da poesia.
Ainda é possível ser poeta?
Mas por que, nessas circunstâncias, manter a afirmação de pertencer à categoria “poeta”? As respostas são, com frequência, contraditórias e ambíguas. A fraqueza da poesia no terreno econômico provoca um desprezo mais ou menos evidente em relação aos que ousam reivindicá-la. Trata-se de um movimento natural do tipo de sociedade em que vivemos e em que vive o poeta. A poesia não se dedica muito aos acontecimentos desagradáveis que se reproduzem por toda parte – aliás, em minha opinião, esse não é seu papel. Mas, se por acaso ela tem a audácia de fazê-lo, lhe responderemos, como Stálin teria respondido a alguém que lhe falasse da oposição do papa à sua política: “O Vaticano? Quantas divisões?”. Para as pessoas, e para a “quarta página dos jornais”, onde ficam os anúncios publicitários, ser poeta é, no fundo, rigorosamente nada.
Aliás, se dirá, a poesia, coisa nobre, não é mais o que fazem os poetas. Eles não a merecem. A poesia está em outros lugares: na canção, no pôr-do-sol, no romance etc. Pois a poesia, para as pessoas, só é concebível quando a encontramos onde ela não está. Isso pode ser chamado, a partir de uma expressão de Yannick Liron, de efeito fantasma. A poesia está morta para todos os fins práticos, mas sua aura permanece.
Não surpreende que, para muitos, declarar-se poeta, em nossos dias, tenha algo de ridículo e até de vergonhoso. Os efeitos de decomposição formal mencionados anteriormente se conjugam com o sentimento de inadequação ao mundo e com um desejo legítimo de reconhecimento social, levando um grande número de poetas a não apresentar seus livros como poesia, a negá-los.
E assim, inevitavelmente, excelentes poetas, desencorajados pela ausência de repercussão (vendas inexistentes; espera de um ou dois anos para ver seus livros publicados por editoras que não sejam minúsculas ou financiadas pelo próprio autor; o silêncio infalível da imprensa etc.), passam a se dedicar a outras atividades: ao romance, ao teatro, ao cinema ou à ópera.
Produtos de substituição
Sendo a poesia inútil, ou seja, invendável, passada, ultrapassada, atividade linguística fora de moda, gênero literário moribundo, muita gente pensou que seu desaparecimento não seria ruim, e que seu lugar seria reservado a um novo produto, livre das pressões do passado literário, “absolutamente moderno”. A isso se dedicou no passado a vanguarda que instaurou em seu lugar o TEXTO. O “texto” desapareceu, aparentemente sem deixar rastros, mas pudemos notar um reaparecimento recente, sob a forma do documento poético.
O “documento”, nessa expressão definidora, é uma forma nova do “texto”, reivindicando para si um estatuto sério, menos metafísico na aparência que seu predecessor, quase científico. Mas, menos radicais que os criadores do texto, nos anos 1960, os fundadores desse novo gênero literário o adornaram com o adjetivo “poético”. Eles tentaram justificar o emprego desse adjetivo que, para todo mundo, evoca a poesia, tal e qual ela existe em todas as línguas da Europa há muitos séculos, por um raciocínio etimológico. Jean Paulhan, em um saudável pequeno livro, La Preuve par l’étymologie1, mostrou o caráter burlesco desse tipo de raciocínio: ele se baseia na hipótese pouco verossímil de que o sentido de um termo evolui no decorrer do tempo de maneira rigorosamente paralela à substância linguística que o constituía na origem. No caso do “documento poético”, o adjetivo, interpretado etimologicamente, é destinado a que o “documento” se beneficie do efeito fantasma que tem a palavra “poesia”.
Necessidade de poesia
Parece que se pode deduzir, de tudo o que foi dito até aqui, que os dias da poesia estão contados. Entretanto, na massa daqueles que não são mais leitores de poesia, e que são até cada vez menos leitores simplesmente, a fascinação pela poesia não desapareceu. Podemos falar, parafraseando o título de um livro de Paul Fournel (Besoin de vélo2Necessidade de bicicleta, N. do T.), de uma “necessidade de poesia”. Os progressos técnicos, que permitem publicar a baixo custo, e, principalmente, o desenvolvimento exponencial da internet, com a multiplicação dos sites e dos blogues, favorecem a expressão dessa necessidade. A própria natureza da poesia, que se faz nos poemas, geralmente de dimensões modestas, lhe permite ser muito mais acessível na tela do que o romance, por exemplo. (Quem já leu Em Busca do Tempo Perdido em uma tela de computador?) Não farei prejulgamentos sobre o futuro do e-book, que nos prometem regularmente há vários anos, mas que ainda não tem uma existência muito garantida. O “mercado”, esse personagem todo poderoso que reina no mundo, lhe prepara o terreno, por exemplo, começando a esvaziar as bibliotecas públicas. Contudo, podemos constatar que encontramos muitos poemas na rede mundial de computadores e, que a poesia, por isso, atinge mais leitores que o livro, pois esse é pouco vendido.
Ao mesmo tempo, as leituras de poesia se multiplicaram, e os auditórios têm frequentemente dimensões respeitáveis. A economia, entretanto, uma vez mais, desempenha um papel nesse fenômeno: muitas cidades descobriram que era muito mais barato convidar um ou dois poetas do que um cantor, uma orquestra ou um balé. É nesse contexto que a “necessidade de poesia” encontrou um modo de expressão original: o slam.
Slam
A “necessidade” de andar de bicicleta se manifesta mais subindo sobre uma do que assistindo ao Tour de France3 pela televisão. O sucesso das bicicletas de aluguel em Paris é prova disso. Da mesma maneira, a vontade de entrar em contato com a música pode se realizar no karaokê e na ida a concertos, mas tal realização é sem dúvida mais plena com a participação ativa em um coral ou em uma banda de rock. A invenção do slam, ao menos inicialmente, se baseava em um postulado explícito: todo mundo é virtualmente poeta.
Todo mundo, portanto, pode “dar uma de poeta”. O slam, se diz, é uma “arte de expressão popular oral, declamatória, que se pratica nos lugares públicos como bares ou associações, sob a forma de encontros e de justas oratórias”. Extraio esta passagem de uma apresentação do slam: “a palavra slam designa, na gíria americana, ‘o tapa’, ‘o impacto’, termo emprestado da expressão ‘to slam a door’, que significa literalmente ‘bater a porta’. No quadro da poesia oral e pública, trata-se de pegar o ouvinte pelo colarinho e de ‘bater’ nele com as palavras, as imagens, para sacudi-lo, emocioná-lo”.
slam pode ser identificado por várias características:
– Ele é oral;
– Ele não tem, a priori, intenções artísticas – prova, segundo seus iniciadores, de seu caráter democrático;
– É uma arte de improvisação. Dessa forma, restabeleceria o contato com a poesia tradicional popular;
– Se supõe que ele faça renascer “um velho gênero literário da Idade Média: a ‘tenson’ (gênero poético medieval praticado pelos trovadores da Occitânia), em que dois poetas se lançam em um desafio oratório sobre um assunto previamente determinado”.
Tal genealogia prestigiosa repousa sobre um contrassenso: a tenson dos trovadores era infinitamente erudita e supunha um público capaz de apreciá-la. O mesmo acontecia com a poesia tradicional improvisada, que se apoiava em práticas muito antigas, utilizando formas complexas e regras restritivas. É impossível se aproximar de tais modelos no estado de ignorância geral em relação à poesia que existe hoje. Por isso só encontramos, na produção “slamista”, fragmentos de poesia clássica privados de suas condições de existência, métrica e ritmo. A rima acordou de seu longo sono, mas desceu ao estado mínimo, no qual reina nas composições do ensino primário. Notamos reminiscências escolares decrépitas e, principalmente, a expressão dos sentimentos mais rasos, das emoções indiscerníveis daquelas presentes nas novelas.
O vrum-vrum
slam, sem dúvida, não apresenta um perigo muito grande para um exercício menos elementar da poesia. O mesmo não acontece em relação ao fenômeno que denomino “vrum-vrum”. Trata-se da invasão do campo da poesia pelo que foi chamado de “poesia de performance” e que, em estreita colaboração com os “atores culturais” públicos ou privados, tomados por uma devoradora paixão pelo “espetáculo vivo”, tende a se tornar o modo privilegiado de existência da poesia, excluindo o escrito em benefício da oralidade. Vemos assim, cada vez mais, nas manifestações que se declaram “poéticas” – festivais internacionais de poesia, por exemplo –, “poetas” cuja atividade apresentada ao público consiste em rolar embaixo de uma escada; rasgar uma grossa lista telefônica em cena; produzir, com ajuda eletrônica, sequências sonoras inusitadas e admiráveis que não incluam uma única palavra. Quando a língua é chamada para contribuir, em um enorme número de casos, o texto produzido é medíocre.
Todas essas manifestações são respeitáveis, às vezes impressionantes, não raramente de grande qualidade artística. Mas por que chamá-las de “poesia”? Por que não denominá-las música, ginástica, número de circo, sketch, canção, balé, striptease? Uma das obras reclamadas como emblemáticas pelos adeptos do vrum-vrum, a Ursonata, de Kurt Schwitters, se anuncia exatamente como música e não como poema. Certamente é a quase inexistência da poesia na economia que permite tal ridículo desvio. Um “poeta” desse tipo, que só apresenta sons, não precisa temer a concorrência feroz que encontraria caso desejasse se impor no campo musical.
Ler e dizer
Eu não sou profeta e não sei se o vrum-vrum se tornará ou não a única forma reconhecida de poesia. Sem ir até esse estado extremo, me parece que há o risco de se estabelecer a dominação esmagadora da dimensão oral em detrimento do livro e mesmo da tela. Isso seria uma amputação e uma regressão. Ora, existe hoje na França, como sempre existiu, poesia; muito boa poesia. Difícil ou não, que fala de tudo, de você, de nada, e que inventa, renova, surpreende, encanta. A encontramos nos livros, revistas, gravações sonoras, vídeos; nas livrarias (elas existem) que não renunciaram a apresentá-la, a apoiá-la, a vendê-la. Leia-a, copie-a, aprenda-a, como se fazia no passado.
Esse artigo serve para defender o seguinte ponto de vista: que a poesia tem lugar em uma língua; que ela é feita com palavras – sem palavras não há poesia; que um poema deve ser um objeto artístico da língua com quatro dimensões, ou seja, composto para uma página, para uma voz, para um ouvido, e por uma visão interior. A poesia deve se ler e dizer.
Jacques Roubaud é poeta, romancista e matemático.


1     Le Temps qu’il fait, Cognac, 1988.










2     Seuil, Paris, 2002.3     Tour de France, ou Volta da França, é uma prestigiada competição ciclística anual (Nota da edição brasileira).