Aos Mestres, com carinho!

Aos Mestres, com carinho!
Drummond, Vinícius, Bandeira, Quintana e Mendes Campos

sábado, 22 de dezembro de 2018

MININO, poema de Itárcio Ferreira

(Autor?)


Eu era tão belo e acreditava em anjos.
Lia me cantava canções de ninar.
Feliz, o céu era azul e a vida prateada.
Chutado pela bunda e colhões conheci o mundo.
De nada adiantava querer acordar.
As horas passam, que canseira.
Espero apenas o último tic-tac-ar.

Itárcio Ferreira

sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

O SERMÃO DO FOGO, poema de T. S. Eliot


O dossel do rio se rompeu: os derradeiros dedos das folhas
Agarram-se às úmidas entranhas dos barrancos. Impressentido,
O vento cruza a terra estiolada. As ninfas já partiram.
Doce Tâmisa, corre suave, até que meu canto eu termine.
O rio não suporta garrafas vazias, restos de comida,
Lenços de seda, caixas de papelão, pontas de cigarro
E outros testemunhos das noites de verão. As ninfas já partiram.
E seus amigos, os ociosos herdeiros de magnatas municipais,
Partiram sem deixar vestígios.
Às margens do Léman sentei-me e lá chorei . . .
Doce Tâmisa, corre suave, até que meu canto eu termine,
Doce Tâmisa, corre suave, pois falarei baixinho e quase nada te direi.
Atrás de mim, porém, numa rajada fria, escuto
O chocalhar dos ossos, e um riso ressequido tangencia o rio.

Um rato rasteja macio entre as ervas daninhas,
Arrastando seu viscoso ventre sobre a margem
Enquanto eu pesco no canal sombrio
Durante um crepúsculo de inverno, rodeando por detrás o gasômetro,
A meditar sobre o naufrágio do rei meu irmão
E sobre a morte do rei meu pai que antes dele pereceu.
Brancos corpos nus sobre úmidos solos pegajosos
E ossos dispersos numa seca e estreita água-furtada,
Que apenas vez por outra os pés dos ratos embaralham.
Atrás de mim, porém, de quando em quando escuto
O rumor das buzinas e motores, que trarão na primavera
Sweeney de volta aos braços da Senhora Porter.
‘Ó a Lua que luminosa brilha
Sobre a Senhora Porter e sua filha, ambas
A banhar os pés em borbulhante soda.’
Et O ces voix d’enfants chantant dans la coupole!

(Trecho)

T. S. Eliot

Tradução de Ivan Junqueira

quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

QUASE, poema de Mário de Sá-Carneiro


Um pouco mais de sol - eu era brasa,
Um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num grande mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dor! - quase vivido...

Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim - quase a expansão...
Mas na minhalma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo ... e tudo errou...
- Ai a dor de ser - quase, dor sem fim...
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou...

Momentos de alma que desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...

Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...

Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...

Um pouco mais de sol - e fora brasa,
Um pouco mais de azul - e fora além.
Para atingir faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Listas de som avançam para mim a fustigar-me
Em luz.
Todo a vibrar, quero fugir... Onde acoitar-me?...
Os braços duma cruz
Anseiam-se-me, e eu fujo também ao luar...

Mário de Sá-Carneiro

quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

ATÁVICA, poema de Adélia Prado


Minha mãe me dava o peito e eu escutava,
o ouvido colado à fonte dos seus suspiros:
‘Ô meu Deus, meu Jesus, misericórdia’.
Comia leite e culpa de estar alegre quando fico.
Se ficasse na roça ia ser carpideira, puxadeira de terço,
cantadeira, o que na vida é beleza sem esfuziamentos,
as tristezas maravilhosas.
Mas eu vim pra cidade fazer versos tão tristes
que dão gosto, meu Jesus misericórdia.
Por prazer da tristeza eu vivo alegre.

Adélia Prado

Júlia Vargas - "Canoa, canoa"

sábado, 8 de dezembro de 2018

A Babaquice de Deus, por André Carvalho




"Deus, Supremo, Todo-Poderoso, Onipresente, Onividente, Onipotente, Omni-Tripla-Ação, Omni3. Escolha como quer chamá-lo, se Jesus, Jeová, IHVH, Buda Quetzalcoatl, Oxalá, Ormuz Masda, Osíris, Zeus, Alá, Rá, Ishtar, Júpiter ou Chuck Norris. Tudo isso é a mesma coisa e, no fundo, Deus é um grande troll. Sim, isso mesmo! Se todos os crentes estão certos e realmente existir um deus, ele é a criatura mais sádica, bandida, perversa, moleque e não tem o direito de usar farda preta."

sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

Daíra cantando Belchior no Sr. Brasil

A CRIAÇÃO, por Eduardo Galeano



A mulher e o homem sonhavam que Deus os estava sonhando.
Deus os sonhava enquanto cantava e agitava suas maracas, envolvido em fumaça de tabaco, e se sentia feliz e também estremecido pela dúvida e o mistério.
Os índios makiritare sabem que se Deus sonha com comida, frutifica e dá de comer.
Se Deus sonha com a vida, nasce e dá de nascer.
A mulher e o homem sonhavam que no sonho de Deus aparecia um grande ovo brilhante.
Dentro do ovo, eles cantavam e dançavam e faziam um grande alvoroço, porque estavam loucos de vontade denascer.
Sonhavam que no sonho de Deus a alegria era mais forte que a dúvida e o mistério; e Deus, sonhando, os criava, e cantando dizia:
– Quebro este ovo e nasce a mulher e nasce o homem. E juntos viverão e morrerão. Mas nascerão novamente. Nascerão e tornarão a morrer e outra vez nascerão. E nunca deixarão de nascer, porque a morte é mentira.

Eduardo Galeano

quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

O mundo de Deus, por Mario Quintana



Aquele astronauta americano que anunciou ter encontrado Deus na lua é no
fim de contas menos simplório do que os primeiros astronautas russos, os quais
declararam, ao voltar, não terem visto Deus no céu.

Porque, se Deus é paz e paz é silêncio afinal, deve Ele estar mesmo muito mais
na lua do que nas metrópoles terrenas.

E, pelo que me toca, a verdade é que nunca pude esquecer estas palavras de um personagem de Balzac:

“O deserto é Deus sem os homens.”

Mario Quintana

quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

FALAS DE UNS, poema de Mia Couto




O caçador fala,
o marinheiro cala.

Um vive de morte emboscada,
outro se amarra em cais de partida.

O homem faz amor
para se sentir bem.

A mulher faz amor
quando se sente bem.

Uns falam.
Outros apenas fogem do silêncio.

Uns amam.
Outros de si mesmos escapam.

Mia Couto