Aos Mestres, com carinho!

Aos Mestres, com carinho!
Drummond, Vinícius, Bandeira, Quintana e Mendes Campos

sábado, 27 de fevereiro de 2016

DEZ COISAS E MAIS UMA SOBRE A CARTA


Por Fernando Fiorese, em seu blog

1.

A carta é uma máquina perfeita. Nós é que, às vezes, emperramos a sua mecânica alada com palavras de açúcar ou veneno, de urgência ou etiqueta.

2.

Escrever uma carta é sem pausa. E continua sem nós por dias e semanas de distância, a letra lenta a procurar um par para a dança.

3.

Por estas mal traçadas linhas é um lugar-comum que deveria vir grafado no cabeçalho de toda carta digna deste nome. Como um preito ao escrever só e desarmado.

4.

Esperar uma carta é como estar doente do outro. Daí o ambiente infantil e hospitalar que domina e faz a casa arfar a horas contadas.

5.

Toda carta de amor, desde as dobras do envelope até as volutas da caligrafia, deve ter um estudado desleixo, como fosse o acaso comum de uma flor furtada ao jardim vizinho.

6.

Para quem sabe, receber uma carta muda o luto em secreta alegria. Mas abrir e ler exige atravessar outras muitas distâncias.

7.

Na sua elegante gramática, os verbos da carta são todos bitransitivos. Alguns fogem à regra: rasgar, unhar, amassar, extraviar, queimar, esconder, rasurar.

8.

No princípio é o envelope e tudo o que ele antecipa. Convém, no entanto, considerar que nódoas, rasuras e rasgos são, não raro, apenas nódoas, rasuras e rasgos. Também o perfume.

9.

Para ler uma carta, suspenda as trombetas do ordinário, guarde-se nas suas sete solidões, esteja inteiro nesta perigosa operação de armar e desarmar o horizonte. Para ler uma carta é preciso ter olhos, mãos, fígado, pulmões, sexo, rins, unhas – enfim, um corpo cabal.

10.

Na verdadeira carta – sempre manuscrita –, desvelam-se dor e alegria, gesto e afeto, vida e vigor. Trata-se de uma presença. Quando impressa, muda em correspondência – deselegância e vazio.

Mais uma

Somos os rituais que perdemos, como cartas à deriva na velocidade de um tempo que não sabe a espera nem a delicadeza de se dar num envelope.

Billy's Balloon

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

PURIFICAÇÃO, poema de Itárcio Ferreira

Vícios dos homens

Por que a desenfreada busca
Da poesia?
Por que a espreito de meu esconderijo?
Caço-a como bicho raro?
Faço-lhe graças, acenos, caprichos
e desejos como um escravo,
se há prazeres mais fáceis,
mais intensos?
Por que não o vício do ópio,
o sexo, a política
ou qualquer outro desejo
imediato?



Visitem o blog do poeta: Itárcio Ferreira, poemas

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

Notas sobre a freira Maria

FÁBULA DE UM ARQUITETO, poema de João Cabral de Melo Neto

João Cabral de Melo Neto

A arquitetura como construir portas,
de abrir; ou como construir o aberto;
construir, não como ilhar e prender,
nem construir como fechar secretos;
construir portas abertas, em portas;
casas exclusivamente portas e teto.
O arquiteto: o que abre para o homem
(tudo se sanearia desde casas abertas)
portas por-onde, jamais portas-contra;
por onde, livres: ar luz razão certa.

Até que, tantos livres o amedrontando,
renegou dar a viver no claro e aberto.
Onde vãos de abrir, ele foi amurando
opacos de fechar; onde vidro, concreto;
até refechar o homem: na capela útero,
com confortos de matriz, outra vez feto.


Como me sinto quando...

pais-de-primeira-viagem-bebe-gravidez-polvo_mae

Via Pipipum

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

ESTIGMA, poema de Aldo Lins





"A minha alma é um grito.
E toda a minha obra é um comentário
sobre esse grito."
(Nikos Kazantzakis)


Acordei chorando
Jorrava de dentro de mim
Toda uma denúncia de tudo aquilo que sou.

Vagabundo, maluco, mendigo, moribundo,
anarquista, amante, poeta e sonhador.

Não me conheço,
Aliás, só por fotografia
Não sou lavoura nem edifício.
Sou um homem que passou fome
Escarrou sangue
E foi preso como anarquista.

Também não sei mais sorrir
A minha pele hoje
É uma tatuagem cheia de escamas.

Até o meu canário fugiu da garganta
Deixando minha alma de vidro
Perdida pelos escombros
Útero da solidão.

Meus trinta anos
O que direi a eles
Quando reinar o eclipse da despedida
Haverei de doar meus olhos
Para alguém poder te ver.

Pois quem sabe um dia
Eu, hóspede da utopia
Assustado com a sombra
Dos meus próprios sonhos
Seja encontrado sem vida
Sentado num cabaré vazio.





EPISÓDIO 2 - CAÇADA FOLCLÓRICA - MAPINGUARI

terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

São os rios, poema de Jorge Luis Borges


Somos o tempo. Somos a famosa
parábola de Heráclito o Obscuro.
Somos a água, não o diamante duro,
a que se perde, não a que repousa.
Somos o rio e somos aquele grego
que se olha no rio. Seu semblante
muda na água do espelho mutante,
no cristal que muda como o fogo.
Somos o vão rio prefixado,
rumo a seu mar. Pela sombra cercado.
Tudo nos disse adeus, tudo nos deixa.
A memória não cunha sua moeda.
E no entanto há algo que se queda
e no entanto há algo que se queixa.



Jorge Luis Borges


segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Cat Stevens - Father and Son

Ode ao burguês, poema de Mário de Andrade


Eu insulto o burguês! O burguês-níquel,
O burguês-burguês!

A digestão bem feita de São Paulo!

O homem-curva!, o homem-nádegas!

O homem que sendo francês, brasileiro,italiano
é sempre um cauteloso pouco-a-pouco!

Eu insulto as aristocracias cautelosas!

Os barões lampiões! Os condes Jões, os duques zurros!
que vivem dentro de muros sem pulos,
e gemem sangue de alguns mil réis fracos
para dizerem que as filhas da senhora falam o francês
e tocam os ” Printemps” com as unhas!

Eu insulto o burguês funesto!

O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições!

Fora os que algarismam os amanhãs!

Olha a vida dos nossos setembros!

Fará sol? Choverá? Arlequinal!

Mas á chuva dos rosais

o extâse fará sempre o sol

Morte á gordura!

Morte ás adiposidades cerebrais

Morte ao burguês mensal,
ao burguês-cinema! ao burguês-tíburi!
Padaria suíssa! Morte viva ao Adriano!
“- Ai, filha, que te darei pelos teus anos?
– Um colar… – Conto e quinhentos!!!
mas nós morremos de fome ! “

Come! Come-te a ti mesmo, oh! gelatina pasma!

Oh! purée de batatas morais!

Oh! Cabelos nas ventas ! Oh! Carecas!

Ódio aos temperamentos regulares!

Ódio aos relógios musculares! Morte á infâmia!

Ódio á soma! Ódio aos secos e molhados!

Ódio aos sem desfalecimentos nem arrependimentos,
sempiternamente as mesmices convencionais!
De mãos nas costas! Marco eu o compasso! Eia!

Dois a dois! Primeira posição! Marcha!

Todos para a central do meu rancor inebriante!

Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio!

Morte ao burguês de giolhos
cheirando religião e que não crê em Deus!

Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico

Ódio fundamento, sem perdão!

Fora! Fu! Fora o bom burguês!…

sábado, 20 de fevereiro de 2016

Ilustrações bizarras da Idade Média (I)











SONS, poema de Itárcio Ferreira


Se me tocas os seios
e me arrepio,
se me tocas o ventre
com tuas mãos macias,
qual explorador do desconhecido;
se me tocas, amante,
qual músico a seu instrumento,
esperas do meu corpo
o retorno de tuas carícias.

Se me tocas,
esperas o retorno
de tua arte,
esperas meus suspiros,
meus gemidos, os sons
pelos quais se expressam
o prazer.

Por isso, quando amamos,
canto,
comporto-me como música.



Visitem o blog do poeta: Itárcio Ferreira, poemas

A arte sarcástica de Anton Gundim (II)











Via Anton Gudim

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Solidão absoluta, poema de Paulo Jonas de Lima Piva


 Quando eu ficar sozinho
 da solidão mais absoluta
 sem pai, mãe
 sem cachorro nem lembranças
 sem o amor que nunca conheci
 só me sobrarão letras
 e a certeza da morte
 em qualquer rua ou asilo
 é quando vou precisar de Drummond
 é quando vou fugir com Kerouac
 é quando terei de entupir minha cabeça com discursos e versos
 já que não terei amigos
 nem filhas dedicadas
 não saberei mais conversar nem dar risada
 pois a solidão será absoluta
 daquelas de penumbra
 mofadas, silenciosas
 de remédios e copos d'água sobre o criado-mudo
 daquelas que só permitem
 livros.




 Visitem o site do poeta: O Pensador da Aldeia

O Martelo de Nietzsche



Não, não é montagem a foto acima, para quem não conhece são fotos raras e pouco conhecidas: o triangulo amoroso formado por Nietzsche, (a direita) com Paul Rée e Lou Andreas-Salomé, peladões em 1882.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Conheça 05 poemas do livro "Poema pássaro", de Juliana Meira


todas as palavras
com suas mutações
contagiam meu corpo

por isso sofro
desde a sombra
até o osso
***

por ser palavra
pugna a página

por ser palavra
perpassa o achaque

assume o sumo
invade
***

quem se atreve nestas águas
é por instinto

jamais duvida o perigo
ora sempre em sigilo

pra não despertar
o destino

***

tento pintar
a memória

revisito traços
jogo tanta tinta fora

sustento ideias que
estão só na minha

fundo cor de gelo
faço cor de pérola

talvez mais
carvão

vou tingir de chão
toda atmosfera

***

há no olho do gato
algo que não se vê
em nenhum outro

alguma coisa observa atenta
por vezes apenas contempla
noutras fera espreita
pondera

olhar feito lanterna
espectro de luz fulge
revelando traço lúgubre vertical
no abre e fecha da retina
cristal


Visitem o blog da poetisa: TEMPOEMA

Para adquirir o livro: Poema Pássaro

EPISÓDIO 1 - CAÇADA FOLCLÓRICA - SACI

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Paul Simon: Township jive, zimbabwe 1987 | graceland

Não sei quantas almas tenho, poema de Fernando Pessoa

Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem acabei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem  alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,

Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem;
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.

Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo :  "Fui  eu ?"
Deus sabe, porque o escreveu.