Aos Mestres, com carinho!

Aos Mestres, com carinho!
Drummond, Vinícius, Bandeira, Quintana e Mendes Campos

sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

A PROCURA DE WAGNER (*)



Wagner era seu preferido. Gostava da sua suavidade, sua calma. Seu pai preferia Mozart. Não, ele não, era Wagner. Já tinha, portanto, sua opinião formada, pensava, pelo menos em relação à música.

Era algo importante para um garoto de sua idade. Certa vez lera, num dos volumes da biblioteca do pai, que encontrara fora das estantes, e que agora duvidava que pudesse de novo achá-lo, que um lorde inglês, do século XVIII, dissera que a música dos homens, nada mais era que uma imitação da música da natureza que está no ar, em toda parte, nada tendo, pois, de criativo, de imaginoso, de genialidade, todos os compositores de todos os tempos, já que qualquer um, mesmo sem talento poderia filtrá-la, e dedicara sua vida a provar a sua teoria, ou seja, criando, ou melhor, copiando da natureza as suas melodias até a exaustão. 

Decerto que não conseguiu o seu intento, morrendo, se não louco, obcecado pelo que não conseguia atingir.  Ricardo acreditava, não na música inata à natureza, solta no ar, mas na música inata ao homem, talvez como um fenômeno biológico, um dom, bastando apenas desenvolvê-lo, como os atletas que desenvolvem seus músculos. Apesar disso, dessa quase certeza, não pretendia ser um compositor. 

Apesar dessa quase certeza, pensava – por que outros conhecimentos, aprendidos ali, diretamente do pai, na biblioteca, que o mesmo chamava de labirinto, influência de Borges certamente – traziam-lhes dúvidas.

Na biblioteca do pai, Ricardo fazia suas viagens, seus descobrimentos, sua iniciação.  Já que não participara com Marco Polo, das suas incursões pelo Oriente desconhecido, o fazia agora através dos livros; já que não participara do desenvolvimento do pensamento do homem: gregos, romanos, Bacon, Descartes, Locke, Newton, etc., agora o perseguia, etapa por etapa, tendo mais do que eles, não a genialidade, mas as informações do século XX.

De Locke, vinha-lhe a dúvida em relação à música inata ao homem, já que o mesmo discordava, não só do lorde inglês, figura sem muita importância científica, mas das ideias de Descartes sobre conhecimentos inatos. Porém, da infância vinha-lhe a dúvida em relação às ideias de Locke.

A maldade parecia sim, inata, se não ao homem, ao menos a infância: com que prazer aprisionava pequenos animais como baratas, gafanhotos, borboletas, e os torturava até a aparente morte, terminando por queimá-los, inevitavelmente; sentia prazer em realizar pequenos furtos, esconder objetos, comer o proibido. 

Havia também a indiferença ante o sofrimento dos outros, e até o riso disfarçado diante de lágrimas. Mas julgava tudo isso como algo necessário, uma fase obrigatória, uma iniciação.  Não se achava definitivamente mau.

A infância passava. Não havia muito que fazer, apenas às aulas, algumas brincadeiras com seus colegas, e o resto do tempo destinava ao conhecimento, a descobrir continentes, a viajar através do tempo, à poesia. 

De Fraçois Prevert, o seu poema preferido era “Como aprisionar um pássaro”. Talvez por que se visse aprisionado a um destino: conhecer, descobrir, imaginar. Destino, se é que era escrito para ser cumprido, também seria algo inato a existência.  Sua sede, sua fome, seu desespero diante do novo, do conhecimento, da inteligência era, pois o seu impulso, mais ainda a sua certeza de compreender. Para que? Ainda não o sabia, mas a existência era destinada a um aprendizado.
                       
Parou. Olhou os livros ao seu redor, nas estantes. Pôs um disco: Mozart.  Sentou-se. Fechou os olhos. Não sorriu.


(*) Ao som do prelúdio de Tristão e Isolda.

(Itárcio Ferreira)

O Analfabeto Político



O pior analfabeto é o analfabeto político.

Ele não ouve, não fala, nem participa dos acontecimentos políticos.

Ele não sabe que o custo de vida, o preço do feijão, do peixe, da farinha, do aluguel, do sapato e do remédio dependem das decisões políticas.

O analfabeto político é tão burro que se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia a política.

Não sabe o imbecil que, da sua ignorância política, nasce a prostituta, o menor abandonado, e o pior de todos os bandidos, que é o político vigarista, pilantra, corrupto e lacaio das empresas nacionais e multinacionais. 

(Bertolt Brecht)

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Um poema de França



Cadê o seu cartão?
Não tem cartão?
Ponha um carimbo de LIVRE PASSE
na sua identidade
E passe e repasse sua trajetória
É lícito. Não é usual
Grite o seu pensamento
Esparrame sua dor
Multiplique o alarido
Pra que não descanse em paz
o seu opressor

(França)

Nota do SENCPMGRITO:
Fui amigo de França, a quem fui apresentado pelo poeta Erickson Luna, em 2004. Poucos meses antes do seu falecimento nos encontramos no Bar do Seu Hélio, na rua Mamede Simões, na Boa Vista. França estava concedendo uma entrevista, no Bar Central, na mesma rua, para um documentário.
No meu poema "Réquiem para minha morte" relembro um pouco da nossa saudosa amizade.
(Itárcio Ferreira).

Mais informações sobre o poeta França no Poeminflamado.

Dom Hélder Câmara




“... quando dou pão aos pobres,

chamam-me de santo, quando

pergunto pelas causas da pobreza,

me chamam de comunista.”...

(Dom Hélder Câmara)

O enfado de Bartolomea

Foto: Ellen Von Unwerth

Encontrei no Tenho estado a ler Whitman, por Beatrix Kiddo

"Segundo dizia, não havia dia nenhum que não fosse consagrado a um santo, e mesmo a vários, e o homem e a mulher deviam por isso abster-se de ter relações carnais. A isto, juntavam-se os dias de jejum, os quatro tempos, as vigílias dos apóstolos ou de mil outros santos, a sexta-feira, os sábados e os domingos, dias do senhor, toda a quaresma, certas luas e grande número de excepções do mesmo género. Pensava com certeza que se podiam ter com as mulheres, na cama, férias como as que ele tinha no tribunal civil. Empregou este método durante muito tempo, para grande enfado da dama, em quem tocava uma vez por mês, quanto muito. Guardava-a, porém, o melhor possível, receando sempre que outro homem ensinasse a Bartolomea os dias de trabalho, tal como ele lhe ensinava os dias santos."

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

O EXÍLIO DE CASANOVA

(Veneza, 2 de abril de 1725 — Duchcov, Reino da Boémia, 4 de junho de 1798)

   
   Chamo-me Giacomo Casanova. Aqui no meio destes livros que tanto aprendi a amar, penso que sou feliz, pois tanto quanto amei as mulheres, as conquistas, as viagens, amei o saber, a ciência. E onde suas fontes senão nos livros? Depósito da erudição dos homens, do produto de suas mentes.

  Já me cansavam as intermináveis viagens à cata de aventuras e dinheiro, o que se diga, a bem da verdade, as ciências, a lucidez, a mente arejada, qual uma sala em que as grandes janelas estivessem sempre abertas aos ventos e a o sol ou a lua, ajudaram-me. Mas tudo que consegui tomou-me sabiamente o destino, como ocorre a todo imprudente.

   O convite do Conde W. veio resgatar uma vida, já em seu declínio, deu-me a segurança e a paz, apesar de não fazer justiça, em sua remuneração, aos meus dotes intelectuais. E que não me ouçam ouvidos maldosos, pois que não reclamo a indulgência do valoroso Conde, mas a fatalidade do meu arrebatamento a um exílio.

   Por outro lado, nunca minhas faculdades estiveram tão voltadas para a leitura e a introspecção. Sou um filósofo, e o digo sem importar-me com as opiniões e zombarias de pseudossábios, de invejosos, que me julgam, não pela retidão e imparcialidade de meu pensamento, mas pela minha vida passada, a que renunciei. Não sei bem se me julgam por uma verdadeira moral reflexiva e ética, ou se por inveja de minha outrora licenciosidade.

   Criticam-me também, e as críticas partem dos mesmos pseudossábios e seus asseclas, pelo meu vestir. Mas, pergunto eu, que posso fazer se nestas terras alemãs se vestem tão mal as pessoas? Não posso renunciar aqui as minhas vestimentas francesas e italianas. Basta-me a renúncia que faço dos alimentos que tanto saboreei e aprecio e que agora as lembranças gastronômicas assaltam-me, em pesadelos.

Tenho dúvidas se os criados alemães, que o Conde pôs a minha disposição são estúpidos, ou rebeldes, a ponto de, apesar de minha insistência, só servirem-me esses desagradáveis e insabores pratos natais. Se fosse jovem, e a esgrima ainda me servisse como em tempos passados, não ficariam sem respostas obedientes, as minhas ordens.

    Mas os livros que me rodeiam serão testemunhas de minha vitória final, paixões de minha existência a quem escolhi, ou escolheram-me, para companheiros de minhas últimas impressões sobre a terra.

    A vida assemelha-se a certas frutas exóticas dos trópicos, a quem, um amigo, às vezes fazia-me presentear, de indicações afrodisíacas, o que com a minha vida de aventureiro e conquistador, sempre me chegavam a bom tempo. Pois bem, essas frutas não serviam para o suco, apesar de não serem pequeninas, quando espremidas não se conseguia resultado satisfatório, a não ser com uma grande quantidade, sendo, pois, mais interessante comer-lhe a polpa saborosa. 

A vida da mesma forma, depois de saborearmos os seus melhores pedaços, o que reunimos no final? Se esquecermos das suas melhores passagens, dos seus prêmios, das nossas glórias – e o tempo faz com que esqueçamos, e que nos turvem as lembranças, principalmente aqueles pequenos prazeres ou as nuances dos corpos, sobramo-nos o nada: o desenho de um seio, um sorriso, um olhar, um carinho. As tão exuberantes nádegas da Marquesa C. escapam-me das lembranças – e o que se nos sobra, pergunto-me novamente? Nem ao menos um amor, alguém que na velhice nos acompanhe, sendo uma lembrança concreta, um troféu, de nossas conquistas. 

Talvez a Divina Providência, negando-me uma companheira na velhice, livrou-me de ranzinza mulher, que na juventude bela e sábia, na velhice passasse a amargurar-se pela perda da beleza e se tornasse acre, quitinosa. Planos maiores me reservou a decadência, creio, que o de aturar uma Xantipa.

   Não almejo mais nenhuma glória em vida, talvez rever Veneza, mas as cansativas viagens e seus custos me desestimulam as ideias. Aqueles poucos que têm acesso as minhas memórias sabem e compreendem, que não busco com elas glórias literárias, apesar de meu belo estilo, e sim um expurgo.

Minhas conquistas, a vida que vivi, são para mim, hoje, as suas lembranças, suplícios. Portanto que instrumento maior de humilhação, de punição do que a confissão pública de nossos pecados? Sou corajoso hoje com a pena, como já o fui com a espada, na juventude e maturidade.

    Mas a minha intenção, que faço questão de expor logo no início das memórias, servirão de apoio às chacoalhas de críticos e pseudo-filósofos. Lobos que se vestem de cordeiro, e que são os piores tormentos aos que pretendem regenerar-se moralmente. Quando os meus escritos atingirem o público – e para isso alguns amigos tratam de apresentarem-me a editores – serão públicas as minhas amarguras e públicas serão as chacoalhações.

    Poderia compor, se poeta fosse, nesta noite, a mais bela canção de amor. Mas presto-me apenas a deixar aqui registradas as impressões de um velho, carcomido pelo reumatismo, já no fim de sua caminhada. Angustiada caminhada. É noite. Atingi-me o cansaço.  Deixo as emoções e busco o descanso, o sono.


    (Itárcio Ferreira)

O Outro Mundo de Xicão Xucuru

Marcelo Adnet, ironiza eleitores elitistas brasileiros

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Solano Trindade, o poeta negro



Aproveitando o embalo do post anterior, resgato outra matéria que fiz, só que, desta vez, para outro jornal, o “Mea Boca”, ótimo jornal, também de vida curta, do CALL (Centro Acadêmico de Letras e Linguística da Unicamp). É uma matéria sobre um poeta e artista brasileiro fantástico, mas terrivelmente esquecido: Solano Trindade. Lembro que na época, só consegui ter acesso a seus livros de poesia através de sua filha, Raquel, também fantástica artista popular. O texto é longo (novamente), mas vale a pena conhecer este que cumpriu no Brasil um papel muito similar ao do Nicomedes Santa Cruz, no Peru: de resgatar a força e a beleza da cultura negra. Ao final, um vídeo com sua filha Raquel declamando o famosíssimo “Tem gente com fome” que chegou a ser musicado pelos Secos & Molhados.

O Poeta NEGRO

“A leitura dos seus versos deu-me confiança no poeta que é capaz de escrever Poema do Homem e O Canto dos Palmares. Há nesses versos uma força natural e uma voz individual, rica e ardente, que se confunde com a voz coletiva.”

[ Carlos Drumond de Andrade, em carta a Solano, 02/12/1944 ]


Ele foi operário, comerciário, funcionário público, jornalista, poeta, cineasta, pintor, homem de teatro e um dos maiores animadores culturais brasileiros do seu tempo. Foi premiado no exterior e elogiado por celebridades como Carlos Drummond, Darcy Ribeiro, Otto Maria Carpeaux, Sérgio Milliet e tantos outros. Esse negro (e pobre) escritor recifense está hoje esquecido nos círculos culturais, apesar de tudo o que fez pela cultura brasileira, pelo resgate da arte popular e pela independência da cultura negra. Esquecido justamente porque fez dos seus versos, como de toda sua arte, “uma arma, um toque de clarim, que desperta as energias, levanta os corações, combate por um mundo melhor.”, nas palavras do sociólogo francês Roger Bastides. Este artista simples e contundente, genial e pobre, crítico e negro ainda não foi digerido por nossa inteligentsia. Nós, brancos, porque na universidade somos todos brancos, reverenciamos agora este negro poeta negro.


“Ainda sou poeta

meu poema
levanta os meus irmãos.
Minhas amadas
se preparam para a luta,
os tambores
não são mais pacíficos
até as palmeiras
têm amor à liberdade”.
(trecho do poema “Canto dos Palmares”)


O palco é Recife, 1908, apenas vinte anos após a abolição da escravidão. Ali, no humilde bairro de São José, no dia 24 de julho, enquanto seu pai batia sola e sua mana pisava milho no pilão para o angu das manhãs, nascia, co´a alma batizada pelos tambores, atabaques, gonguês e agogôs, o negro Francisco Solano Trindade.


Considerado por vários críticos o criador da poesia assumidamente negra no Brasil, Solano Trindade nasceu imerso na cultura popular pernambucana, fortemente marcada pelas raízes negras. Desde criança acompanhava seu pai, o sapateiro e cômico Manuel Abílio, nas danças do Pastoril e do Bumba-meu-boi e lia, a pedido de sua mãe Emerenciana, quituteira e operária, novelas, literatura de cordel e poesia romântica. O primeiro encontro sistemático de Solano com a poesia surgiu quando freqüentava a igreja presbiteriana. Logo, seus primeiros versos tratavam de assuntos religiosos. Algum tempo depois, rompeu com a acomodação da igreja em relação aos problemas sociais citando uma passagem do evangelho de João: “quem não ama a seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê”.


A década de 1930 no Brasil é marcada por uma releitura da questão racial brasileira, especialmente depois que Gilberto Freyre lança seu “Casa Grande & Senzala”. Intelectuais brancos tendem a valorizar a contribuição cultural dos descendentes africanos. Com esse cenário montado, em 1934, Solano, que desde cedo buscava compreender sua identidade e raízes, organiza o I e II Congressos Afro-Brasileiros no Recife e em Salvador. Funda ainda o Centro Cultural Afro-Brasileiro e a Frente Negra Pernambucana, uma extensão da Frente Negra Brasileira. Por essa mesma época publica os seus “Poemas Negros”.


POEMA AUTOBIOGRÁFICO
“Quando eu nasci,

Meu pai batia sola,
Minha mana pisava milho no pilão,
Para o angu das manhãs…
Portanto eu venho da massa,
Eu sou um trabalhador…

Ouvi o ritmo das máquinas,

E o borbulhar das caldeiras…
Obedeci ao chamado das sirenes…
Morei num mucambo do “”Bode”",
E hoje moro num barraco na Saúde…

Não mudei nada…”


Na década de 1940, depois de deixar o Recife, Solano fixa residência no Rio de Janeiro. Na cidade maravilhosa, frequentava o Café Vermelhinho onde se reuniam intelectuais, políticos e artistas. Ali era amigo de pessoas como o Barão de Itararé e Santa Rosa. Em meio a essa efervescência cultural, Solano funda o comitê Democrático Afro-Brasileiro, o Teatro Folclórico Brasileiro, lança, no auditório da UNE, a Orquestra Afro-Brasileira e cria o Teatro Experimental do Negro (TEN). Durante a estréia no Rio, em maio de 1945, o TEN sofreu violentos ataques dos conservadores. Em editorial, o jornal O Globo chegou a afirmar que se tratava de “um grupo palmarista tentando criar um problema artificial no País” referindo-se ao racismo que segundo o jornal não existia no Brasil. Para Darcy Ribeiro o TEN foi “um núcleo ativo de conscientização dos negros, para assumirem orgulhosamente sua identidade e lutar contra a discriminação”.


“A minha poesia continuará com o estilo do nosso populário, buscando no negro o ritmo, no povo em geral as reivindicações sociais e políticas e nas mulheres, em particular, o amor. Deixem-me amar a tudo e a todos”. (Solano)

Mais tarde (1950), Solano concretizou um dos seus grandes sonhos, fundando, com apoio do sociólogo Edson Carneiro, o Teatro Popular Brasileiro (TPB), cujo elenco era formado por operários, domésticas, comerciários e estudantes. O TPB apresentava espetáculos de batuques, congadas, caboclinhos, capoeira, coco e outras manifestações populares, viajando por toda a Europa. Em 1955 criou o Brasiliana, grupo de dança brasileira que bateu recorde de apresentações no exterior. Realizou ainda em Praga o documentário “Brasil Dança”.


Núcleo de Teatro Experimental do Negro-SP (1951) / Diretor Solano Trindade


OLORUM ÈKE **
“Olorum Ekê

Olorum Ekê
Eu sou poeta do povo
Olorum Ekê

A minha bandeira

É de cor de sangue
Olorum Ekê
Olorum Ekê
Da cor da revolução
Olorum Ekê

Meus avós foram escravos

Olorum Ekê
Olorum Ekê
Eu ainda escravo sou
Olorum Ekê
Olorum Ekê
Os meus filhos não serão
Olorum Ekê
Olorum Ekê”

** Olorum Ekê: “povo do Santo forte”, termo Iorubá.

De volta ao Brasil, Solano vem a São Paulo e é convidado pelo escultor Assis para apresentar-se no Embu. Leva todo o seu grupo. Dormem no barracão de Assis nos finais de semana, quando mostram sua arte para multidões. Solano apaixona-se pelo Embu, muda-se para lá e sua casa torna-se uma núcleo artístico. É a atividade de Solano e do escultor Assis que faz surgir a feira de artesanato e revoluciona o local, fazendo do Embu “das Artes”, como passou a ser conhecido, um centro de cultura popular. Depois que Embu passou a ser atração mais turístico-comercial que artística, deixa a cidade e vai viver na capital paulista.

Como ator, trabalhou nos filmes “Agulha no Palheiro”, “Mistérios da Ilha de Vênus”, “Santo Milagroso” e “A hora e a vez de Augusto Matraga” e mais: foi co-produtor do filme “Magia Verde”, premiado em Cannes. No teatro, foi Solano Trindade quem primeiro encenou (1956) a peça “Orfeu da Conceição”, de Vinícuis de Morais, depois transformada em filme pelo francês Marcel Cammus com o nome de “Orfeu Negro”.

Solano construía, de forma indissociável sua vida política e sua veia artística. Possuía a felicidade dos homens que se dedicam a uma grande obra e se confundem com ela. Essa era sua ética, sua vida, sua luta, mais do que uma estética. Filiado ao Partido Comunista, Solano Trindade promovia reuniões da célula Tiradentes na sua própria casa. Durante a perseguição aos “vermelhos”, empreendida pelo governo Dutra, invadem sua casa. A polícia vira o colchão, à procura de armas. Exemplares de seus livros são apreendidos e o “Poemas de uma Vida Simples” é tirado de circulação. A filha Raquel lembra: “Papai jamais esconderia armas. Sua luta era feita com idéias”. Preso, por causa do poema “Tem gente com fome”, Solano não se abala. Raquel e a mãe, Margarida, percorrem as cadeias até encontrá-lo. Quando sai, Solano parece fortalecido. Embora tenha olhos tristonhos, seu otimismo é contagiante, nasce do seu amor pela arte e pela vida. Continua escrevendo, fazendo teatro e espalhando sonhos e esperanças por onde passa. Em 1964, um dos seus quatro filhos (Francisco) é assassinado numa prisão da didatura militar.


NEM SÓ DE POESIA VIVE O POETA **
“Nem só de poesia vive o poeta

há o “fim do mês”
o agasalho
a farmácia
a pinga
o tempo ruim, com chuva
alguém nos olhando
policialescamente
De vez em quando
um pouco de poesia
uma conta atrasada
um cobrador exigente
um trabalho mal pago
uma fome
um discurso à moda Ruy
E às vezes uma mulher fazendo carinho
Hoje a lua não é mais dos poetas
Hoje a lua é dos astronautas.”

** poema inédito até 2008, quando foi revelado por sua filha Raquel.

No início da década de 70, após o esvaziamento do Teatro Popular Brasileiro, Solano como sempre pobre e agora doente passa por vários hospitais. No dia 20 de fevereiro de 1974, o poeta morre como indigente, num hospital no Rio de Janeiro. Sua obra é reconhecida por poucos assim como sua morte, a ponto de sua produção sequer passar pelos portões das universidades, como acontece aqui na Unicamp. A literatura negra não tem “espaço” para estar nas salas de nosso instituto de letras: quantos negros temos no IEL? Quantos se interessariam? Em toda a Unicamp existe um único livro de Solano (no Instituto de Artes!)… doado pela própria filha, Raquel.


O reconhecimento de Solano vem mesmo do povo com quem lutou, vem do povo para quem se entregou. Em 1976, foi tema da escola de samba Vai-Vai, com enredo elaborado por sua filha. Os versos do samba ainda ecoam: “Canta meu povo, vamos cantar em homenagem ao poeta popular Vai-Vai é povo, está na rua saudoso poeta, a noite é sua.” Um das poucas tentativas de trazer de volta o nome de Solano Trindade para o grande público ocorreu entre 1975, quando o poema “Tem Gente com Fome” iria integrar o disco dos Secos & Molhados. Mas, como explicou João Ricardo (que musicou o poema), problemas com a censura impediram a gravação. Só na década de 80, Ney Matogrosso gravaria a canção.

A poesia de Solano o marcou. Orgulhava-se ser chamado de “poeta negro”. Foi comparado a importantes escritores como o cubano Nicolas Guilhén – de quem foi amigo – e o americano Langston Hughes. A fala poética de Solano Trindade, que não se afasta do realismo ingênuo e da solidão da vida cotidiana do povo, é sempre dominada pela intuição e fascinada pelo delírio da alma coletiva que canta com ternura e nobreza. Sua poesia enreda-se, quase sempre de maneira direta a um tema essencial: o anseio de liberdade tão próprio de sua etnia e tão latente em sua classe social, onde o poeta assume sem indiferença a sua circunstância em relação ao mundo.

As palavras escritas num poema à filha Raquel se tornariam proféticas: “Estou conservado no ritmo do meu povo. Me tornei cantiga determinadamente e nunca terei tempo para morrer.”

GRAVATA COLORIDA
“Quando eu tiver bastante pão

para meus filhos
para minha amada
pros meus amigos
e pros meus vizinhos
quando eu tiver
livros para ler
então eu comprarei
uma gravata colorida
larga
bonita
e darei um laço perfeito
e ficarei mostrando
a minha gravata colorida
a todos os que gostam
de gente engravatada…”


Raquel, Unicamp e Urucungos

Em 1988, Raquel Trindade foi convidada para lecionar na Unicamp, mesmo não tendo diploma universitário. Os conhecimentos transmitidos pelo pai ilustre e a luta contra a discriminação racial bastaram para que ela desse aulas de folclore, teatro negro e sincretismo religioso. “Quando cheguei lá”, conta Raquel “só tinha um negro na turma de graduação. Aí eu pedi à Universidade para que fosse criado um curso de extensão para que eu pudesse ensinar folclore à comunidade negra e às outras graduações”.


Na primeira turma de extensão universitária houve 170 inscritos para ouvir sobre folclore nacional e cultura negra. Para Raquel, samba precisa ser ensinado, sim. “Há coisas que as pessoas precisam saber. Precisa falar dos escravos de Campinas, da Fazenda Barão Geraldo, da Santa Genebra, Rio das Pedras. Lá, os escravos faziam rodas de samba de bumbo nas horas vagas. Precisa contar a história da dança, também. Nas Escolas Lavapés e Vai-Vai, o samba era dançado mais nos quadris do que nos pés. O samba de agora é todo copiado do Rio de Janeiro”.

A partir da procura pelo curso que passou a ministrar na Unicamp, a folclorista teve a idéia de criar o grupo Urucungos, puítas e quinjengues. Esses são nomes de instrumentos bantos que foram trazidos pelos escravos para São Paulo. “O Urucungo é composto de negros da comunidade, de funcionários da Unicamp, alunos e professores”. A maior parte das danças do grupo foram pesquisadas e criadas por Raquel. O grupo existe até hoje. Raquel parou de lecionar na Unicamp pois não aguentou o preconceito academicista que exigia saberes “diplomados” e “certificados”.

“Tem gente com fome” de Solano lido por sua filha Raquel