Wagner era seu preferido.
Gostava da sua suavidade, sua calma. Seu pai preferia Mozart. Não, ele não, era
Wagner. Já tinha, portanto, sua opinião formada, pensava, pelo menos em relação
à música.
Era algo importante para
um garoto de sua idade. Certa vez lera, num dos volumes da biblioteca do pai,
que encontrara fora das estantes, e que agora duvidava que pudesse de novo
achá-lo, que um lorde inglês, do século XVIII, dissera que a música dos homens,
nada mais era que uma imitação da música da natureza que está no ar, em toda
parte, nada tendo, pois, de criativo, de imaginoso, de genialidade, todos os
compositores de todos os tempos, já que qualquer um, mesmo sem talento poderia
filtrá-la, e dedicara sua vida a provar a sua teoria, ou seja, criando, ou
melhor, copiando da natureza as suas melodias até a exaustão.
Decerto que não conseguiu
o seu intento, morrendo, se não louco, obcecado pelo que não conseguia
atingir. Ricardo acreditava, não na
música inata à natureza, solta no ar, mas na música inata ao homem, talvez como
um fenômeno biológico, um dom, bastando apenas desenvolvê-lo, como os atletas
que desenvolvem seus músculos. Apesar disso, dessa quase certeza, não pretendia
ser um compositor.
Apesar dessa quase
certeza, pensava – por que outros conhecimentos, aprendidos ali, diretamente do
pai, na biblioteca, que o mesmo chamava de labirinto, influência de Borges
certamente – traziam-lhes dúvidas.
Na biblioteca do pai,
Ricardo fazia suas viagens, seus descobrimentos, sua iniciação. Já que não participara com Marco Polo, das
suas incursões pelo Oriente desconhecido, o fazia agora através dos livros; já
que não participara do desenvolvimento do pensamento do homem: gregos, romanos,
Bacon, Descartes, Locke, Newton, etc., agora o perseguia, etapa por etapa,
tendo mais do que eles, não a genialidade, mas as informações do século XX.
De Locke, vinha-lhe a
dúvida em relação à música inata ao homem, já que o mesmo discordava, não só do
lorde inglês, figura sem muita importância científica, mas das ideias de
Descartes sobre conhecimentos inatos. Porém, da infância vinha-lhe a dúvida em
relação às ideias de Locke.
A maldade parecia sim,
inata, se não ao homem, ao menos a infância: com que prazer aprisionava
pequenos animais como baratas, gafanhotos, borboletas, e os torturava até a
aparente morte, terminando por queimá-los, inevitavelmente; sentia prazer em
realizar pequenos furtos, esconder objetos, comer o proibido.
Havia também a indiferença
ante o sofrimento dos outros, e até o riso disfarçado diante de lágrimas. Mas
julgava tudo isso como algo necessário, uma fase obrigatória, uma
iniciação. Não se achava definitivamente
mau.
A infância passava. Não
havia muito que fazer, apenas às aulas, algumas brincadeiras com seus colegas,
e o resto do tempo destinava ao conhecimento, a descobrir continentes, a viajar
através do tempo, à poesia.
De Fraçois Prevert, o seu
poema preferido era “Como aprisionar um pássaro”. Talvez por que se visse
aprisionado a um destino: conhecer, descobrir, imaginar. Destino, se é que era
escrito para ser cumprido, também seria algo inato a existência. Sua sede, sua fome, seu desespero diante do
novo, do conhecimento, da inteligência era, pois o seu impulso, mais ainda a
sua certeza de compreender. Para que? Ainda não o sabia, mas a existência era
destinada a um aprendizado.
Parou.
Olhou os livros ao seu redor, nas estantes. Pôs um disco: Mozart. Sentou-se. Fechou os olhos. Não sorriu.
(*)
Ao som do prelúdio de Tristão e Isolda.
(Itárcio Ferreira)
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