Aos Mestres, com carinho!

Aos Mestres, com carinho!
Drummond, Vinícius, Bandeira, Quintana e Mendes Campos

quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

Poema do nadador, de Jorge de Lima



A água é falsa, a água é boa.


Nada, nadador!
A água é mansa, a água é doida,
Aqui é fria, ali é morna,
A água é fêmea.
Nada, nadador!
A água sobe, a água desce,
A água é mansa, a água é doida.
Nada, nadador!
A água te lambe, a água te abraça,
A água te leva, a água te mata.
Nada, nadador!
Se não, que restará de ti, nadador?
Nada, nadador.

Jorge de Lima

II - O meu olhar é nítido como um girassol, poema de Alberto Caeiro


II

O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo...
 
Creio no Mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender...
O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo…
 
Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe porque ama, nem o que é amar...
 
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência é não pensar...

Alberto Caeiro

terça-feira, 24 de setembro de 2019

ESTAVA EU SENTADO, PERTO DO MAR, por Aldous Huxley


Estava eu sentado, perto do mar, a ouvir com pouca atenção um amigo meu que falava arrebatadamente de um assunto qualquer, que me era apenas fastidioso. Sem ter consciência disso, pus-me a olhar para uma pequena quantidade de areia que entretanto apanhara com a mão; de súbito vi a beleza requintada de cada um daqueles pequenos grãos; apercebia-me de que cada pequena partícula, em vez de ser desinteressante, era feito de acordo com um padrão geométrico perfeito, com ângulos bem definidos, cada um deles dardejando uma luz intensa; cada um daqueles pequenos cristais tinha o brilho de um arco-íris... Os raios atravessavam-se uns aos outros, constituindo pequenos padrões, duma beleza tal que me deixava sem respiração... Foi então que, subitamente, a minha consciência como que se iluminou por dentro e percebi, duma forma viva, que todo o universo é feito de partículas de material, partículas que por mais desinteressantes ou desprovidas de vida que possam parecer, nunca deixam de estar carregadas daquela beleza intensa e vital. Durante um segundo ou dois, o mundo pareceu-me uma chama de glória. E uma vez extinta essa chama, ficou-me qualquer coisa que nunca mais esqueci que me faz pensar constantemente na beleza que encerra cada um dos mais ínfimos fragmentos de matéria à nossa volta.

Aldous Huxley

terça-feira, 27 de agosto de 2019

FUNCIONÁRIO PÚBLICO, poema de Itárcio Ferreira



Exageradamente infeliz.
Prisioneiro.
Longe do sol e da vida,
aqui nesta sala onde ganho o meu pão
e minha vodca.
Onde perco minha felicidade, minha sanidade.
A burocracia vai me enlouquecendo.

Burocrata,
copio a cópia de relatórios técnicos
que mesmo copiado são revisados.
Relatórios técnicos
que nada tem a dizer,
a não ser: tédio, vaidade, futilidade.

A tristeza me invade como uma onda
onde afogo-me de corpo, alma e desespero.
Preciso do mar, preciso do sol, preciso sorrir.
Preciso da música e beber qualquer coisa que contenha álcool.
Libertar meus olhos da tela do computador,
o meu corpo da sala com ar-condicionado,
a minha alma da catraca do ponto,
fugir da monotonia, da monotonia, da monotonia…

Itárcio Ferreira

Para refletir (114)


"Aquilo que pode ser dito pode ser dito com clareza."

(Wittgenstein, filósofo austríaco, 1889/1951).

Ary Lobo - "Vendedor de caranguejo"

sexta-feira, 23 de agosto de 2019

Links: 30 dos 100 melhores contos da literatura universal




Via Homo Literatus
  1. Deriva – Horacio Quiroga
  2. Óleo de cão – Ambrose Bierce
  3. Diante da lei – Franz Kafka
  4. Bola de sebo – Guy de Mauppassant
  5. Casa tomada – Julio Cortázar
  6. Continuidade dos parques – Julio Cortázar
  7. Corações solitarios – Rubem Fonseca
  8. Diga que não me matem – Juan Rulfo
  9. O afogado mais bonito do mundo – Gabriel García Márquez
  10. O travesseiro de penas – Horacio Quiroga
  11. Um artista no trapézio – Franz Kafka
  12. O barril de Amontillado – Edgar Allan Poe
  13. O capote – Nikolai Gogol
  14. O coração delator – Edgar Allan Poe
  15. O aniversário da infanta – Oscar Wilde
  16. O escaravelho de Ouro – Edgar Allan Poe
  17. fantasma de Canterville – Oscar Wilde
  18. O gato preto – Edgar Allan Poe
  19. O gigante egoísta – Oscar Wilde
  20. O imortal – Jorge Luis Borges
  21. O presente dos reis magos – O. Henry
  22. Um som de trovão – Ray Bradbury
  23. Acender uma fogueira – Jack London
  24. A dama do cachorrinho – Anton Tchekhov 
  25. A última pergunta – Isaac Asimov
  26. Os assassinos – Ernest Hemingway
  27. Os mortos – James Joyce
  28. Os nove bilhões de nomes de deus – Arthur C. Clarke
  29. Missa do Galo – Machado de Assis
  30. Nenhum caminho para o paraíso – Charles Bukowski

quinta-feira, 22 de agosto de 2019

Para refletir (113)


Somos parte de um continente; se um simples pedaço de terra é levado pelo mar, a Europa inteira fica menor. A morte de cada ser humano me diminui, porque sou parte da humanidade. Portanto, não me perguntem por quem os sinos dobram: eles dobram por ti.”

(John Donne, poeta inglês, séc. XVI)

Silvio Cesar - "Pra Você"

segunda-feira, 29 de julho de 2019

Ozymândias, poema de Percy Bysshe Shelley


Ao vir de antiga terra, disse-me um viajante
Duas pernas de pedra, enormes e sem corpo,
Acham-se no deserto. E jaz, pouco distante,
Afundando na areia, um rosto já quebrado,
de lábio desdenhoso, olhar frio e arrogante
Mostra esse aspecto que o escultor bem conhecia
Quantas paixões lá sobrevivem, nos fragmentos,
À mão que as imitava e ao peito que as nutria
No pedestal estas palavras notareis:
"Meu nome é Ozimândias, e sou Rei dos Reis: 
Desesperai, ó Grandes, vendo as minhas obras!"
Nada subsiste ali. Em torno à derrocada
Da ruína colossal, areia ilimitada
Se estende ao longe, rasa, nua, abandonada.

Percy Bysshe Shelley

(Tradução  Eugenio da Silva Ramos)

domingo, 28 de julho de 2019

EPÍLOGO, poema de Sebastião Alba



Fui
hóspede desta mansão
na encruzilhada
dos meus sentidos.

O verso apenas é,
transversal e findo,
o poleiro evocativo
da ave do meu canto.

Essa ave em que o Outono
se perfila
e, cada vez mais exígua
no rumo e nas vigílias
do seu bando,
de súbito, espirala
até sumir-se
num país imaginário.

Sebastião Alba

sábado, 27 de julho de 2019

SONETO ANTIGO, peoma de Cecília Meireles



Responder a perguntas não respondo. 
Perguntas impossíveis não pergunto. 
Só do que sei de mim aos outros conto:
de mim, atravessada pelo mundo.

Toda a minha experiência, o meu estudo,
sou eu mesma que, em solidão paciente,
recolho do que em mim observo e escuto
muda lição, que ninguém mais entende.

O que sou vale mais do que o meu canto.
Apenas em linguagem vou dizendo
caminhos invisíveis por onde ando. 

Tudo é secreto e de remoto exemplo.
Todos ouvimos, longe, o apelo do Anjo.
E todos somos pura flor de vento.
Cecília Meireles

segunda-feira, 22 de julho de 2019

sexta-feira, 12 de julho de 2019

Chuva de vento, poema de Mauro Mota



De que distância
chega essa chuva
de asas, tangida
pela ventania?

Vem de que tempo?
Noturna agora
a chuva morta
bate na porta.

(As biqueiras da infância, as lavadeiras
correm, tiram as roupas do varal,
relinchos do cavalo na campina,
tangerinas e banhos no quintal,
potes gorgolejando, tanajuras,
os gansos, a lagoa, o milharal.)

De onde vem essa
chuva trazida
na ventania?

Que rosas fez abrir?
Que cabelos molhou?

Estendo-lhe a mão: a chuva fria.


Mauro Mota

quinta-feira, 11 de julho de 2019

Cidade de orgias, poema de Walt Whitman



Cidade de orgias, passarelas e gozos!
Cidade em quem vivi e cantei em seu meio, que um dia farei ilustre,
Não os seus pajens – não são seus tableaux inconstantes, seus espetáculos que me compensam;
Não as suas fileiras intermináveis de casas – não os navios nos cais,
Não suas procissões nas ruas, nem suas claras janelas, com suas mercadorias;
Nem dialogar com pessoas instruídas, ou trazer a minha parte na festa ou banquete;
Não isso – mas, enquanto passo, Ó, Manhattan! seu relâmpago frequente e ligeiro de olhos que me oferecem amor,
Que oferecem resposta ao meu próprio – estes me compensam;
Amantes, contínuos amantes, apenas, me compensam.

Walt Whitman

quarta-feira, 3 de julho de 2019

Luiz Vaz de Camões, poema (belíssimo) de Carlos Nejar

                                                     Foto de Voltaire Santos

Não sou um tempo
ou uma cidade extinta.
Civilizei a língua
e foi resposta em cada verso.
E à fome, condenaram-me
os perversos e alguns
dos poderosos. Amei
a pátria injustamente
cega, como eu, num
dos olhos. E não pôde
ver-me enquanto vivo.
Regressarei a ela
com os ossos de meu sonho
precavido? E o idioma
não passa de um poema
salvo da espuma
e igual a mim, bebido
pelo sol de um país
que me desterra. E agora
me ergue no Convento
dos Jerônimos o túmulo,
que não morri.
Não morrerei, não
quero mais morrer.
Nem sou cativo ou mendigo
de uma pátria. Mas da língua
que me conhece e espera.
E a razão que não me dais,
eu crio. Jamais pensei
ser pai de santos filhos.

Carlos Nejar


sexta-feira, 28 de junho de 2019

GOSTO DOS AMIGOS, poema de Sebastião Alba


Gosto dos amigos
Que modelam a vida
Sem interferir muito;
Os que apenas circulam
No hálito da fala
E apõem, de leve,
Um desenho às coisas.
Mas, porque há espaços desiguais
Entre quem são
E quem eles me parecem,
O meu agrado inclina-se
Para o mais reconciliado,
Ao acordar,
Com a sua última fraqueza;
O que menos se preside à vida
E, à nossa, preside
Deixando que o consuma
O núcleo incandescente
Dum silêncio votivo
De que um fumo de incenso
Nos liberta.

Sebastião Alba

quarta-feira, 26 de junho de 2019

Soneto, poema de Mário de Andrade


Tanta lágrima hei já, senhora minha,
Derramado dos olhos sofredores,
Que se foram com elas meus ardores
E ânsia de amar que de teus dons me vinha.
Todo o pranto chorei. Todo o que eu tinha,
caiu-me ao peito cheio de esplendores,
E em vez de aí formar terras melhores,
Tornou minha alma sáfara e maninha.
E foi tal o chorar por mim vertido,
E tais as dores, tantas as tristezas
Que me arrancou do peito vossa graça,
Que de muito perder, tudo hei perdido!
Não vejo mais surpresas nas surpresas
E nem chorar sei mais, por mor desgraça!
Mário de Andrade