Aos Mestres, com carinho!

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Drummond, Vinícius, Bandeira, Quintana e Mendes Campos

segunda-feira, 12 de setembro de 2016

Stela do Patrocínio (1941 - 1997) - Poeta e louca



Stela do Patrocínio nasceu em 1941, e viveu, desde 1962, internada na Colônia Juliano Moreira, assim como Arthur Bispo do Rosário (1911 - 1989). Sua fala poética chegou a nós transcrita de cassetes por Viviane Mosé, que organizou essa textualidade no volume Reino dos bichos e dos animais é o meu nome (Rio de Janeiro: Azougue, 2002).


O trabalho de Stela do Patrocínio, em sua fala poética, chamou a atenção de vários artistas, como Georgette Fadel, Juliana Amaral e Lincoln Antonio, que encenaram com seus textos o espetáculo "Entrevista com Stela do Patrocínio" (São Paulo, 2005), e o documentarista Márcio de Andrade, que preparou o documentário Stela do Patrocínio - A mulher que falava coisas. Num país como o Brasil, machista e racista, não é de admirar que a poesia de uma mulher negra e tida como louca não tenha tido mais atenção, com sua textualidade que por vezes nos leva a uma forma de logopeia pelo viés da loucura.

Não sou eu que gosto de nascer
Eles é que me botam para nascer todo dia
E sempre que eu morro me ressuscitam
Me encarnam me desencarnam me reencarnam
Me formam em menos de um segundo
Se eu sumir desaparecer eles me procuram onde eu estiver
Pra estar olhando pro gás pras paredes pro teto
Ou pra cabeça deles e pro corpo deles

(Stela do Patrocínio, em diagramação de sua fala por Viviane Mosé)

Suas enumerações e anáforas por vezes nos remetem à poesia urgente de Patrícia Galvão. Seria também interessante comparar seu trabalho ao de Maura Lopes Cançado (1929 - 1993), outra vítima da nossa fronteira cerrada entre sanidade e loucura. Nos Estados Unidos, soube-se valorizar a contribuição de uma poeta como Hannah Weiner (1928 - 1997), que fez de sua condição psíquica a forma do seu pensar. No segundo número impresso da Modo de Usar & Co., incluímos uma tradução para poema da norte-americana.


Texto de Hannah Weiner (1928 - 1997)

Lembro-me aqui da asserção de Sérgio Buarque de Holanda sobre a poesia de Dante Milano, ao dizer que "seu pensamento é de fato sua forma". No caso de poetas como Stela do Patrocínio ou Hannah Weiner, seu pensamento é toda a sua forma.

Ainda era Rio de Janeiro, Botafogo
Eu me confundi comendo pão
Eu perdi o óculos
Ele ficou com o óculos
Passou a língua no óculos para tratar o óculos com a língua
Ela na vigilância do pão sem poder ter o pão
Essa troca de sabedoria de ideia de esperteza
Dia tarde noite janeiro fevereiro dezembro
Fico pastando no pasto à vontade
Um homem chamado cavalo é o meu nome
O bom pastor dá a vida pelas ovelhas

(Stela do Patrocínio, em diagramação de sua fala por Viviane Mosé)

Imagino que Viviane Mosé tenha se guiado pela marcação oral dos sintagmas que se escandiam da boca da poeta Stela do Patrocínio para marcar suas quebras-de-linha, o que em certos textos nos remete à poética de Murilo Mendes.


Talvez a poeta receba uma nova onda de atenção com o lançamento em São Paulo, amanhã (15 de maio de 2013), da antologia Poesia (Im)Popular Brasileira, com organização de Júlio Mendonça. Lançada pela Lamparina, a antologia vem assim descrita na página da editora:

"Poesia (Im)PopularBrasileira é uma antologia que reúne poemas de alguns importantes poetas brasileiros menos conhecidos do público, ou que, por maior ou menor tempo, ficaram ou estão deslocados em relação aos cânones vigentes, mas que, ao mesmo tempo, foram ou são influenciados por elementos da cultura e da fala populares. São eles: Aldo Fortes, Edgard Braga, Gregório de Matos, Joaquim Cardozo, Max Martins, Omar Khouri, Pagu, Qorpo-Santo, Sapateiro Silva, Sebastião Nunes, Sebastião Uchoa Leite, Sousândrade, Stela do Patrocínio e Torquato Neto. O livro está organizado da seguinte forma: cada um dos poetas é apresentado por um autor convidado, o qual também selecionou uma pequena antologia de seus poemas."

Referimos nossos leitores a algumas páginas da Modo de Usar & Co., em que já discutimos alguns dos autores incluídos, como Patrícia GalvãoJoaquim CardozoMax Martins, o enormíssimo Sapateiro SilvaSebastião Nunes e Torquato Neto (siga os links). Trata-se de uma iniciativa excepcional, e a Modo de Usar & Co. a celebra e agradece ao organizador, Júlio Mendonça. É um início e dos bons. Os esforços poderiam continuar, pensando aqui em outros autores, como Luiz Gama, Pedro Kilkerry, Hilda MachadoOrlando ParoliniMaria Ângela AlvimRaul Fiker, Henriqueta Lisboa – essa representante maior de uma verdadeira poésie pure brasileira que ainda espera o respeito de grande modernista que foi –, ou ainda Francisca Júlia, Marcelo Gama, Isabel CâmaraEdimilson de Almeida Pereira e outros.

Omar Khouri está entre os poetas convidados pela curadoria da Modo de Usar & Co. para o Festival Internacional de Artes de Tiradentes este ano, e terá poemas inéditos no quarto número impresso da revista, a ser lançado durante o festival, entre 12 e 22 de setembro, em Tiradentes, Minas Gerais.

Mas esta antologia me parece a maior contribuição antológica neste ano de tantas antologias, justamente por seu caráter de intervenção no cânone, quesito em que algumas outras antologias têm falhado justamente por sua ânsia canônica. Que venha Stela do Patrocínio.

--- Ricardo Domeneck

§

FALATÓRIO DE STELA DO PATROCÍNIO

É dito: pelo chão você não pode ficar
Porque lugar da cabeça é na cabeça
Lugar de corpo é no corpo
Pelas paredes você também não pode
Pelas camas também você não vai poder ficar
Pelo espaço vazio você também não vai poder ficar
Porque lugar da cabeça é na cabeça
Lugar de corpo é no corpo


§

Meu nome verdadeiro é caixão enterro
Cemitério defunto cadáver
Esqueleto humano asilo de velhos
Hospital de tudo quanto é doença
Hospício
Mundo dos bichos e dos animais
Os animais: dinossauro camelo onça
Tigre leão dinossauro
Macacos girafas tartarugas
Reino dos bichos e dos animais é o meu nome
Jardim Zoológico Quinta da Boa Vista
Quinta da Boa Vista

§

Eu sei que você é uma olho
Uma espiã que faz espionagem
É um fiscal um vigia também
É uma criança prodígio precoce poderes
Milagre mistério
É uma cientista
Já nasce rica e milionária

§

Só depois de relação sexual é que eu posso
carregar tudo pela língua e pela boca

§

Tinha terra preta no chão
Um homem foi lá e disse
Deita aí no chão pra mim te foder
Eu disse não
Vou me embora daqui
Aí eu saí de lá vim andando
Ainda não tinha esse prédio
Não tinha essa portaria
Não tinha esse prédio
Não tinha essa portaria
Não via tinta azul pelas paredes
A parede ainda não era pintada de tinta azul

§

Nasci louca
Meus pais queriam que eu fosse louca
Os normais tinham inveja de mim
Que era louca

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