Aos Mestres, com carinho!

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Drummond, Vinícius, Bandeira, Quintana e Mendes Campos

sábado, 17 de setembro de 2016

Dois grandes poetas negros divagam sobre racismo e poesia, por Sebastião Nunes


Encolhido, tiritando, as magras mãos apertando os joelhos, Adão Ventura agoniza. Na mesinha de cabeceira, frascos de remédio, copo, colher, meia maçã roída, um pacotinho de biscoitos. Da boca aberta escorre grossa espuma amarelada, infiltra-se devagar no travesseiro. Os pés escapam do pijama curto. A ampla testa brilha de febre. Adão delira, o branco do olho raiado de sangue.
            – Adão, Adão, acorda, Adão – diz uma voz rouca.
            – Estou acordado – resmunga o poeta, mexendo com os lábios grossos, como se tentasse engolir a espuma amarelada.
            – Sou Cruz e Sousa, o poeta simbolista – diz a voz rouca. – Estou do seu lado e queria conversar um pouco com você.
            Adão abre os olhos, não vê ninguém. Duas das outras três camas da enfermaria estão ocupadas. Os ocupantes parecem dormir. Que hora seria aquela? Adão não tem ideia da hora. Pode ser manhã, tarde, noite, madrugada. Adão não sabe.
            – Você é um grande poeta, Adão – diz a voz. – Pena que escreva tão pouco...
            – Sou assim mesmo – responde Adão, irritado. – Sempre escrevi pouco.
Ó FORMAS ALVAS, BRANCAS
            Um negro agoniza, outro negro flutua na memória do negro agonizante. O negro que puxa prosa é o negro da memória.
            – Tem um poema seu, Adão, que sempre estou lembrando – diz a voz sem corpo de Cruz e Sousa. – Aquele que diz assim: “Muitas vezes/ a cor da pele/ é uma grande parede.// Daí/ o abraço frouxo, / o beijo mal dado/ e o sorriso amarelo.”.
            – Também gosto dele – diz Adão, e ri, amargo: – É uma litania de cão danado.
            – E tem aquele outro, uma toada deliciosa: “Talvez/ você possa ser/ até um arco-íris/ ou uma fresta/ de luz.// Que vare/ de ponta a ponta/ meu coração/ e me acorde/ para mais/ uma tempestade.”. Esse é lírico até onde não pode mais.
            – E dos seus? – interroga Adão. – Por exemplo, este: “Ninguém sentiu o teu espasmo obscuro/ Ó ser humilde entre os humildes seres./ Embriagado, tonto dos prazeres,/ O mundo para ti foi negro e duro.”. Ou este, também de lirismo exacerbado: “Ó Formas alvas, brancas, Formas claras/ De luares, de neves, de neblinas!.../ Ó Formas vagas, fluidas, cristalinas.../ Incensos dos turíbulos das aras...”.

CORPOS NEGROS E ALMAS BRANCAS
            Cruz e Sousa nasceu de pais escravos, Adão foi neto de escravos. Sobre os pais, escreveu Adão: “Papai/ levava tempo/ para redigir uma carta.// Já mamãe,/ Sebastiana de José Teodoro,/ teve a emoção de assinar seu/ nome completo/ já quase aos setenta anos.”.
            Pode-se dizer, sem exagero, que nasceram de corpo negro e alma branca, para usar um chavão com que brancos tentam ridicularizar negros. João da Cruz e Souza, em 1861, na então Nossa Senhora do Desterro (atual Florianópolis); Adão Ventura Ferreira Reis, 1941, em Santo Antônio do Itambé, então distrito do Serro, MG. 80 anos separam o nascimento deles e, no entanto, a sociedade continuou racista esse tempo todo – quase um século inteiro! João foi educado por família branca e rica; Adão aprendeu por conta própria, aos trancos e barrancos, até se formar em direito na UFMG, sendo seus amigos brancos, na imensa maioria.
            Que fazer, então? Perseguir formas brancas, formas alvas, e foi o que fizeram, até tomarem consciência da cor da pele (o livro mais importante de Adão Ventura tem exatamente este título: “A cor da pele”).

BRANCOS DOMINANTES E NEGROS SUBMISSOS
            Roger Bastide, num ensaio sobre a poesia afro-brasileira, contou 169 evocações do branco na poesia de Cruz e Sousa. E, segundo Ivana Versiani, Bastide interpretou essa preferência como “a expressão de uma imensa nostalgia: a de se tornar branco”. Visão preconceituosa de intelectual europeu branco? Creio que não: esse sentimento envergonhado permeava os sonhos inconfessados dos meninos negros daqueles tempos, até a primeira metade do século XX: um sonho de igualdade pela metamorfose.
            Ainda citando Bastide, através de Ivana, “Cruz e Sousa não viu os orixás se movendo em torno. Nem os exus, nas encruzilhadas. No palácio do seu corpo negro, o fantasma de uma alma branca”. E eu acrescento: Adão também não viu.
            Continua Ivana: “Na concepção dos brancos dominantes, os negros só serviam para o trabalho braçal. E como ele [João] recebeu boa educação e estudou – o que não acontecia com a escassa população negra – só podia se identificar com os colegas brancos. Começou a fazer poesia, escrever em jornais, frequentar rodas de brancos. Assimilou toda a cultura dos brancos – até a noção de que o bom, o bonito, é ser branco. Sua cor lhe pareceu um defeito, uma anomalia. Era natural que desejasse ser branco”.
            Assim também, 80 anos depois, em plena década de 1970, vivia Adão Ventura mergulhado numa cultura de brancos, fingindo ser branco. A consciência da cor da própria pele somente aflorou quando passou um ano nos Estados Unidos e teve de viver absolutamente só, negado pelos alunos brancos (que só o reconheciam como professor de literatura brasileira) e pelos negros, que nem sabiam de sua existência.
           
RECOMEÇA O DELÍRIO
            Adão tem a boca seca, mas não consegue pedir água. Em vez disso, presta mais atenção no que lhe diz a voz rouca:
            – Eu gostaria, se vivesse hoje, de ter escrito alguns de seus poemas – diz Cruz e Sousa. – Por exemplo, este: “E se o amor/ acaba? // E se o barco/ afunda? // Como medir a fala/ de um criado/ mudo?”. Ou então este: “O mundo continua Caim./ Uma bomba comprime meu coração/ reduzindo-o a chumbo e pólvora./ Restam-me os sonhos,/ também já quase plastificados.”.
            – Ah, que tristeza, Cruz e Souza – desabafa Adão agonizando. – Que triste essa vida entre inimigos pela cor da pele! Eu, pelo menos, cheguei a conhecer, a entender, a lutar. Demorou, mas vi. Vi os negros se tornando irmãos e desafiando o poder dos brancos. Mas, por enquanto, só desafiando. Que diferença enorme de poder entre eles! Como a diferença continua enorme de grande e de imensa, de quase infinita!
            – Pelo menos você teve mais sorte que eu – diz Cruz e Sousa.
            – Nem tanta, meu irmão – responde baixinho Adão, os lábios implorando água.

Bibliografia sumária:
“Costura de nuvens”, Adão Ventura, Dubolsinho, 2006
“O assinalado: a trágica vida de Cruz e Sousa”, Ivana Versiani, Dubolsinho, 2012
Ilustração:
Colagem a partir de foto anônima de Adão Ventura e desenho de Cruz e Sousa, por Fausto Prats.

Via GGN