Por Sebastião Nunes
Encolhido, tiritando, as
magras mãos apertando os joelhos, Adão Ventura agoniza. Na mesinha de
cabeceira, frascos de remédio, copo, colher, meia maçã roída, um pacotinho de
biscoitos. Da boca aberta escorre grossa espuma amarelada, infiltra-se devagar
no travesseiro. Os pés escapam do pijama curto. A ampla testa brilha de febre.
Adão delira, o branco do olho raiado de sangue.
– Adão, Adão, acorda, Adão – diz uma voz rouca.
– Estou acordado – resmunga o poeta, mexendo com os lábios grossos, como se
tentasse engolir a espuma amarelada.
– Sou Cruz e Sousa, o poeta simbolista – diz a voz rouca. – Estou do seu lado e
queria conversar um pouco com você.
Adão abre os olhos, não vê ninguém. Duas das outras três camas da enfermaria
estão ocupadas. Os ocupantes parecem dormir. Que hora seria aquela? Adão não
tem ideia da hora. Pode ser manhã, tarde, noite, madrugada. Adão não sabe.
– Você é um grande poeta, Adão – diz a voz. – Pena que escreva tão pouco...
– Sou assim mesmo – responde Adão, irritado. – Sempre escrevi pouco.
Ó FORMAS ALVAS, BRANCAS
Um negro agoniza, outro negro flutua na memória do negro agonizante. O negro
que puxa prosa é o negro da memória.
– Tem um poema seu, Adão, que sempre estou lembrando – diz a voz sem corpo de
Cruz e Sousa. – Aquele que diz assim: “Muitas vezes/ a cor da pele/ é uma
grande parede.// Daí/ o abraço frouxo, / o beijo mal dado/ e o sorriso
amarelo.”.
– Também gosto dele – diz Adão, e ri, amargo: – É uma litania de cão danado.
– E tem aquele outro, uma toada deliciosa: “Talvez/ você possa ser/ até um
arco-íris/ ou uma fresta/ de luz.// Que vare/ de ponta a ponta/ meu coração/ e
me acorde/ para mais/ uma tempestade.”. Esse é lírico até onde não pode mais.
– E dos seus? – interroga Adão. – Por exemplo, este: “Ninguém sentiu o teu
espasmo obscuro/ Ó ser humilde entre os humildes seres./ Embriagado, tonto dos
prazeres,/ O mundo para ti foi negro e duro.”. Ou este, também de lirismo
exacerbado: “Ó Formas alvas, brancas, Formas claras/ De luares, de neves, de
neblinas!.../ Ó Formas vagas, fluidas, cristalinas.../ Incensos dos turíbulos
das aras...”.
CORPOS NEGROS E ALMAS
BRANCAS
Cruz e Sousa nasceu de pais escravos, Adão foi neto de escravos. Sobre os pais,
escreveu Adão: “Papai/ levava tempo/ para redigir uma carta.// Já mamãe,/
Sebastiana de José Teodoro,/ teve a emoção de assinar seu/ nome completo/ já
quase aos setenta anos.”.
Pode-se dizer, sem exagero, que nasceram de corpo negro e alma branca, para
usar um chavão com que brancos tentam ridicularizar negros. João da Cruz e
Souza, em 1861, na então Nossa Senhora do Desterro (atual Florianópolis); Adão
Ventura Ferreira Reis, 1941, em Santo Antônio do Itambé, então distrito do
Serro, MG. 80 anos separam o nascimento deles e, no entanto, a sociedade
continuou racista esse tempo todo – quase um século inteiro! João foi educado
por família branca e rica; Adão aprendeu por conta própria, aos trancos e
barrancos, até se formar em direito na UFMG, sendo seus amigos brancos, na
imensa maioria.
Que fazer, então? Perseguir formas brancas, formas alvas, e foi o que fizeram,
até tomarem consciência da cor da pele (o livro mais importante de Adão Ventura
tem exatamente este título: “A cor da pele”).
BRANCOS DOMINANTES E
NEGROS SUBMISSOS
Roger Bastide, num ensaio sobre a poesia afro-brasileira, contou 169 evocações
do branco na poesia de Cruz e Sousa. E, segundo Ivana Versiani, Bastide
interpretou essa preferência como “a expressão de uma imensa nostalgia: a de se
tornar branco”. Visão preconceituosa de intelectual europeu branco? Creio que
não: esse sentimento envergonhado permeava os sonhos inconfessados dos meninos
negros daqueles tempos, até a primeira metade do século XX: um sonho de
igualdade pela metamorfose.
Ainda citando Bastide, através de Ivana, “Cruz e Sousa não viu os orixás se
movendo em torno. Nem os exus, nas encruzilhadas. No palácio do seu corpo negro,
o fantasma de uma alma branca”. E eu acrescento: Adão também não viu.
Continua Ivana: “Na concepção dos brancos dominantes, os negros só serviam para
o trabalho braçal. E como ele [João] recebeu boa educação e estudou – o que não
acontecia com a escassa população negra – só podia se identificar com os
colegas brancos. Começou a fazer poesia, escrever em jornais, frequentar rodas
de brancos. Assimilou toda a cultura dos brancos – até a noção de que o bom, o
bonito, é ser branco. Sua cor lhe pareceu um defeito, uma anomalia. Era natural
que desejasse ser branco”.
Assim também, 80 anos depois, em plena década de 1970, vivia Adão Ventura
mergulhado numa cultura de brancos, fingindo ser branco. A consciência da cor
da própria pele somente aflorou quando passou um ano nos Estados Unidos e teve
de viver absolutamente só, negado pelos alunos brancos (que só o reconheciam
como professor de literatura brasileira) e pelos negros, que nem sabiam de sua
existência.
RECOMEÇA O DELÍRIO
Adão tem a boca seca, mas não consegue pedir água. Em vez disso, presta mais
atenção no que lhe diz a voz rouca:
– Eu gostaria, se vivesse hoje, de ter escrito alguns de seus poemas – diz Cruz
e Sousa. – Por exemplo, este: “E se o amor/ acaba? // E se o barco/ afunda? //
Como medir a fala/ de um criado/ mudo?”. Ou então este: “O mundo continua
Caim./ Uma bomba comprime meu coração/ reduzindo-o a chumbo e pólvora./
Restam-me os sonhos,/ também já quase plastificados.”.
– Ah, que tristeza, Cruz e Souza – desabafa Adão agonizando. – Que triste essa
vida entre inimigos pela cor da pele! Eu, pelo menos, cheguei a conhecer, a
entender, a lutar. Demorou, mas vi. Vi os negros se tornando irmãos e
desafiando o poder dos brancos. Mas, por enquanto, só desafiando. Que diferença
enorme de poder entre eles! Como a diferença continua enorme de grande e de
imensa, de quase infinita!
– Pelo menos você teve mais sorte que eu – diz Cruz e Sousa.
– Nem tanta, meu irmão – responde baixinho Adão, os lábios implorando água.
Bibliografia sumária:
“Costura de nuvens”, Adão
Ventura, Dubolsinho, 2006
“O assinalado: a trágica
vida de Cruz e Sousa”, Ivana Versiani, Dubolsinho, 2012
Ilustração:
Colagem a partir de foto
anônima de Adão Ventura e desenho de Cruz e Sousa, por Fausto Prats.
Via GGN