Por André Biernath
Ela já atinge praticamente 10% da população
mundial e a projeção aponta um triste crescimento. Entenda por que a doença é
considerada o mal deste século.
Em 1911, o então almirante Winston Churchill escreveu para sua esposa:
"Acho que um médico pode ser útil para mim se o cachorro negro voltar. Ele
parece estar distante agora, o que é um alívio. Todas as cores voltam à
vida". Estaria o futuro primeiro-ministro britânico falando em códigos
sobre uma missão ultrassecreta? Não! Ele apenas popularizara o termo
"cachorro negro" como uma metáfora para depressão, da qual sofria
longas e duras crises. Aliás, Churchill é só um nome de uma longa lista de personalidades
com um ponto comum em suas biografias: Vincent Van Gogh, Abraham Lincoln,
Albert Einstein e Charles Darwin também penaram com esse transtorno em algum
momento da vida.
Mas a depressão não é uma má companhia apenas para os gênios das artes,
das ciências e da política: ela atinge pessoas de todas as cores, classes
sociais e faixas etárias. A Organização Mundial da Saúde (OMS) apostava que o
problema seria responsável por 9,8% do total de anos saudáveis desperdiçados
pela humanidade lá em 2030. Pois não é que essa estimativa foi alcançada já em
2010, duas décadas antes do previsto? Atualmente, 400 milhões de pessoas
convivem com o distúrbio no planeta. Além de liderar a lista das doenças mais
incapacitantes, a melancolia sem fim gera gastos na casa dos 800 bilhões de
dólares por ano — o equivalente ao Produto Interno Bruto da Turquia.
A situação em nosso país é particularmente ruim: um levantamento
realizado pela americana Universidade Harvard em 18 localidades mostra que a
prevalência de depressão no Brasil é a maior entre as nações em
desenvolvimento, com um total de 10,4% de indivíduos atingidos. E a taxa de
mortes relacionada a episódios depressivos (incluindo suicídios) aumentou 705%
por aqui nos últimos 16 anos, segundo pesquisa realizada pelo jornal O
Estado de S. Paulo.
Convém deixar clara a diferença entre depressão e tristeza. A primeira é
uma doença, marcada por sentimentos de prostração, perda de interesse e prazer,
culpa, baixa autoestima, distúrbios de sono e
na alimentação, cansaço e déficit de concentração. Embora os médicos não
conheçam em detalhes os motivos do início de uma crise — tampouco o que
acontece direito no cérebro deprimido —, o quadro tem diagnóstico e tratamento.
Portanto, não dá para caracterizá-lo como falha de caráter ou falta do que se
preocupar. "Ainda há muito estigma, e isso só prejudica a melhora do
paciente", diz o psiquiatra Táki Cordás, do Instituto de Psiquiatria da
Universidade de São Paulo (IPq-USP).
Na contramão, a tristeza faz parte da natureza humana. "Ela é uma das
formas como expressamos o colorido das emoções", define o psiquiatra Luis
Felipe Costa, consultor da Associação Brasileira de Familiares, Amigos e
Portadores de Transtornos Afetivos. O problema começa quando esse sentimento
paralisa e impede que a vida siga em frente. Aí é preciso procurar ajuda. O
escritor americano Andrew Solomon, autor de O Demônio do Meio-Dia (Companhia
das Letras), obra que faz um grande retrato do transtorno, resume bem esse
conceito: "O contrário da depressão não é a alegria, mas, sim, a
vitalidade".
Mas como explicar essa explosão de casos nas últimas décadas? Os
especialistas entrevistados por SAÚDE foram unânimes em apontar o melhor
diagnóstico da doença como fator principal. "Talvez ela atingisse muita
gente no passado, mas, por falta de informação, ficava escondida", avalia
o psiquiatra Antonio Egidio Nardi, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Mais interesse sobre o tema e médicos preparados justificariam, então, boa
parte da epidemia.
Outro ingrediente de peso é uma palavra que acompanha a rotina de quase
todo cidadão: estresse. "Em estudos com ratos jovens, vemos que ele é um
desencadeador de depressão na vida adulta", observa a biomédica Deborah
Suchecki, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Em humanos, a tensão
e o nervosismo além da conta fazem o cortisol decolar. Quando esse hormônio se
mantém alto por um longo tempo, provoca uma bagunça cerebral. Que tristeza!
Nesse sentido, o fato de boa parte da população viver em cidades
assoladas por trânsito, filas, violência e risco de ataques terroristas e
catástrofes naturais faz o tal do cortisol chegar à estratosfera. O
individualismo e a sobrecarga de informações que bombardeiam a cachola teriam
efeito similar. "O estresse afeta a saúde mental na mesma medida que o tabagismo é prejudicial
ao coração", compara o psiquiatra Gerard Sanacora, da Universidade
Yale, nos Estados Unidos.
Pegando um gancho na fala do médico, um terceiro personagem importante
dessa história é o abuso em álcool, tabaco e outras drogas. Dados de um
levantamento da Unifesp de 2013 apontam um crescimento de 20% no consumo
frequente de bebidas no Brasil, tendência que se repete no planeta inteiro.
"A dependência química é uma das principais promotoras do
transtorno", afirma o psiquiatra André Astete, que hoje atua na Secretaria
Municipal de Saúde de São José dos Pinhais, no Paraná.
Cabe esclarecer que a depressão depende de uma predisposição genética
para se manifestar. Em outras palavras, nem estresse nem drinques a mais
conseguem, sozinhos, acordar o cachorro negro. "Eles funcionam como
gatilhos para o surgimento do distúrbio", diz o médico Antônio Geraldo da
Silva, presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria. O problema é que, na
sociedade moderna, o número de fatores prontos para deflagrar uma crise parece
só aumentar.
Assim como acontece na maioria das doenças, flagrar a melancolia em seus
estágios iniciais está relacionado a um tratamento mais efetivo e menos penoso.
Além disso, quanto mais o quadro se prolonga, piores são suas repercussões.
"Nosso desafio é encontrar os casos leves, uma vez que os moderados e
graves são fáceis de perceber", atesta Cordás. Por ora, o diagnóstico é
feito no consultório, com o relato do paciente e seu histórico familiar — a
ciência ainda não descobriu uma molécula no sangue que denuncia a condição com
assertividade.
Nesse sentido, a U.S. Preventive Services Task Force (USPSTF), uma
comissão de estudiosos que elabora as políticas de saúde pública para o governo
dos Estados Unidos, alterou a sua recomendação sobre a forma de detectar a
depressão. Desde o começo de 2016, eles passaram a sugerir que os médicos —
independentemente da especialidade — realizem testes de rastreamento em todos
os pacientes acima de 18 anos. "Nos baseamos nos estudos em que pessoas
identificadas previamente e tratadas com antidepressivos e psicoterapia obtêm
uma melhora significativa dos sintomas", justifica o epidemiologista
Michael Pignone, membro do USPSTF e professor da Universidade da Carolina do
Norte.
O exame é composto de um questionário simples, com poucas perguntas. As
respostas dão um indicativo de como anda a saúde mental do indivíduo. "É
importante salientar que o rastreamento é só o primeiro passo. Caso o resultado
inicial seja positivo, um psiquiatra realizará uma avaliação criteriosa",
completa Pignone. Infelizmente, o Brasil não possui programas do tipo e não há
uma discussão sólida para que se estabeleça algo nesse mesmo modelo.
"Nosso país conta com apenas 5 500 psiquiatras para um número gigantesco
de queixas", lamenta o neurocientista José Alexandre Crippa, da Faculdade
de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.
Só é necessário tomar cuidado para não enxergar um cachorro negro onde
há apenas tristeza passageira. "Também precisamos fazer diagnósticos
criteriosos e não confundir depressão com uma série de transtornos com
características parecidas, como a bipolaridade",
lembra o psiquiatra Pedro do Prado Lima, de Porto Alegre. Cada distúrbio pede
uma tática diferente de combate — embaralhá-los, portanto, só atrapalha a
recuperação.
Esqueça a história de que a depressão é uma doença exclusiva da mente.
Pesquisas começam a comprovar que seus efeitos físicos vão muito além. Podem
atingir, sem exageros, o corpo inteiro. O primeiro prejudicado é o próprio
órgão do pensamento. "Conforme o quadro avança, ocorre uma diminuição em
estruturas cerebrais importantes, como o hipocampo, relacionado à memória e às
emoções", cita Sanacora. E essa é apenas uma de suas repercussões: o
coração, as articulações e o sistema imunológico sofrem quando a melancolia se
instaura de vez.
Pesquisadores da Universidade de Granada, na Espanha, reuniram dados de
29 estudos com cerca de 3 900 pacientes para entender a fundo essas ligações
perigosas. Após a análise, ficou claro que os sujeitos deprimidos carregam mais
radicais livres no organismo — em excesso, esses elementos prejudicam o
funcionamento das células saudáveis e abrem alas para uma coleção de encrencas.
Por outro lado, substâncias antioxidantes, de efeito benéfico, se encontram em
menor número. A notícia boa é que o tratamento correto traria de volta o
equilíbrio a essa equação.
O drama para o corpo é que a depressão provoca um intenso estado
inflamatório. Lembra da história do cortisol nas alturas? Pois ele volta a
incomodar aqui. "Junto a uma série de fatores, altos níveis do hormônio
baixam a imunidade e aumentam a propensão a artrite reumatoide, problemas
cardiovasculares e até câncer", alerta Costa. O risco sobe nos casos em
que o transtorno se desenvolve por anos a fio, sem nenhum contra-ataque adequado.
Segundo Costa, médicos australianos testam inclusive o uso de
anti-inflamatórios em parceria com os antidepressivos como uma forma de
abreviar o tempo de resposta ao tratamento.
A relação entre melancolia e males cardiovasculares é particularmente
forte. Uma investigação realizada pela Universidade de Bordeaux e sete outras
instituições francesas acompanhou 7 313 indivíduos entre 1999 e 2001. Todos
eles foram avaliados em quatro oportunidades distintas ao longo desse período.
Aqueles que apresentavam altos índices de sintomas depressivos em todas as
ocasiões tinham um risco 75% maior de sofrer um infarto ou um acidente vascular
cerebral, o AVC.
E olha que o caminho contrário também pode ocorrer: uma desordem
qualquer pode ser o gatilho para um abalo psíquico. "Grupos com algum
problema crônico se apresentam mais deprimidos que a população geral",
afirma Astete. Foi o caso do escritor Andrew Solomon: após a morte de sua mãe e
o fim de um relacionamento amoroso, uma crise de pedra nos rins foi a gota
d'água para que o transtorno emergisse. "Senti o controle de minha própria
vida escorregar das mãos. `Se essa dor não parar' disse para um amigo,
`vou me matar'. Eu nunca tinha dito isso antes", escreveu.
Os tratamentos para depressão mudaram muito ao longo da história.
Capacete de chumbo, couve-flor, gengibre, hidromel, mirra, banana-da-terra,
masturbação e até um cano pingando água ao lado do doente já foram prescritos.
É curioso notar também que os remédios surgiram há menos de 70 anos. Em geral,
eles agem no cérebro e aumentam a presença de neurotransmissores relacionados à
sensação de bem-estar. "As classes medicamentosas prescritas atualmente
partem do princípio de que há menos substâncias essenciais, como a serotonina,
para o bom funcionamento dos neurônios", resume Deborah Suchecki.
A recuperação pode levar alguns meses ou até mesmo ser contínua. Nesses
casos, o paciente toma uma dose de manutenção pelo resto da vida, para se
certificar de que a depressão não voltará. "Quem teve uma primeira crise
possui 50% de chance de sofrer outra no futuro", calcula Crippa. Caso o
segundo episódio ocorra, a probabilidade de um terceiro sobe para 70%. Se o
terceiro acontecer, o risco de um quarto chega a 90%. O sujeito que já passou
por quatro momentos depressivos com certeza terá um quinto se nada for feito.
Isso só aumenta a importância de não abandonar a terapia pela metade.
"Há um grande perigo de retorno, e com maior gravidade, se o paciente
desistir no caminho", alerta o psiquiatra Fernando Fernandes, do Programa
de Transtornos Afetivos do IPq-USP. Os comprimidos demoram três semanas para
trazer melhoras. Porém, os pequenos ganhos iniciais não significam cura. É
preciso seguir direitinho a orientação do especialista para não sofrer
recaídas.
Nessas horas, é usual pedir apoio à psicoterapia, que se vale de
técnicas de expressão dos sentimentos e orientações para trazer alívio. Nos
casos leves, ela chega a dar conta do recado sozinha e até dispensa fármacos.
"E, mesmo em situações avançadas, esse tipo de tratamento é um aliado
primordial da terapia medicamentosa", ressalta Silva.
Em breve, novas opções reforçarão o arsenal terapêutico. É o caso do
neuropeptídeo Y e da ocitocina, duas substâncias que mostraram eficácia no
combate à depressão em testes iniciais. "A vantagem desses candidatos é
uma ação rápida em relação às drogas disponíveis hoje, destaca Deborah. Nos
estudos, elas foram administradas por meio de um spray nasal: a mucosa do nariz
está cheia de terminações nervosas, o que faz a droga alcançar o cérebro com
maior velocidade.
Contudo, de nada adianta apelar para novos medicamentos sem o suporte de
familiares e amigos. "A certeza de apoio em um momento de extrema
dificuldade é a chama de esperança para muita gente", reflete Nardi.
Afinal, o tratamento não vai matar o cachorro negro. O objetivo é ensinar o
paciente a lidar e conviver com ele diante das situações difíceis que aparecem
pela frente. Amor e carinho são essenciais para que tudo dê certo. Com eles, o
cão negro amansa e a vida se desvencilha da depressão para abraçar a
vitalidade.
Via SAÚDE
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