“No plano humano, os homens vivem imersos em ignorância, concupiscência e temor. Disto resultam alguns prazeres temporários, muitas misérias duradouras e frustração final”.
Selecionamos,
como novo convidado de nossa série Conversa com Escritores Mortos, Aldous
Huxley (1894 – 1963), autor, entre outras coisas, de Admirável Mundo
Novo, publicado em 1932. Os excertos abaixo foram retirados de
três de seus livros: Admirável Mundo Novo, Contraponto e Também o Cisne
Morre.
Por Camila Nogueira
Mr. Huxley, vamos começar nossa entrevista com um
dos temas mais recorrentes em sua obra – a ciência. Em muitos de seus livros,
principalmente em Admirável Mundo Novo, a ciência assume uma faceta quase, por
assim dizer, ameaçadora…
A ciência fez muito mais para aumentar a servidão
que para diminuí-la. Em primeiro lugar, pelas aplicações na guerra. Melhores
aeroplanos, melhores explosivos, melhores canhões e melhores gases – cada
melhoramento aumenta a soma de terror e ódio, dilata a incidência da terrível histeria
nacionalista. Em outras palavras, cada melhoramento em matéria de armamento
torna mais difícil esquecermos essas horríveis projeções de nós mesmos que se
chamam os ideais de patriotismo, de heroísmo e de glória.
E quanto às aplicações menos destrutivas da
ciência?
Elas não são, na realidade, muito mais
satisfatórias.
Por que?
Porque resultam na multiplicação de objetos
possíveis, na invenção de novos instrumentos de estimulação e na disseminação
de novas necessidades, por intermédio da propaganda. O terrível objetivo da
propaganda é fazer com que os homens confundam posses com bem-estar.
No mundo em que vivemos, é natural que
confundamos essas duas coisas, por menos justo e saudável que seja. O que fazer
para nos distanciarmos dessa noção, que faz de nós como que escravos de nossas
próprias posses?
Jamais aceite o seu mundo como normal, racional e
justo. Não deixe que os propagandistas multipliquem suas necessidades, não
identifique a felicidade com as posses e a prosperidade com o dinheiro para
gastar nas lojas.
Fazer o bem não é importante?
É melhor contentar-se com a abstenção de fazer o
mal; é mais fácil e não produz resultados tão terríveis como tentar fazer o bem
de maneira errada.
Mais alguma coisa?
Seja cínico.
O cinismo é uma qualidade?
Se não for excessivo, sim. Boa parte das coisas
que nos ensinaram a respeitar e a reverenciar não merecem mais do que cinismo.
Considere o seu próprio caso. Você foi ensinada a cultuar ideias como o
patriotismo, a justiça social, a ciência e o amor romântico. Disseram-lhe que
virtudes como a lealdade, a temperança, a coragem e a prudência são boas em si
mesmas, independentemente das circunstâncias. Garantiram-lhe que o sacrifício é
sempre esplêndido e que os belos sentimentos são sempre bons.
E…
Quem não for firme e inabalavelmente cínico em
relação ao palavrório solene dos políticos, bispos, banqueiros e todos os
demais está perdido… Completamente. Condenado à prisão perpétua no cárcere do
ego, condenado a ser uma personalidade no mundo das personalidades – mundo este
que é nosso mundo; mundo da cobiça, do medo e do ódio, da guerra e do
capitalismo, da ditadura e da escravidão.
A cobiça e a ganância são realmente terríveis.
Em nossa sociedade moderna, o ideal franciscano é
impraticável. Mas isso não significa que possamos simplesmente desdenhar são
Francisco como se ele fosse louco. Pelo contrário, a loucura é nossa e não
dele.
Você enxerga méritos na pobreza, então?
A pobreza e o sofrimento só enobrecem quando são
voluntários. A pobreza e o sofrimento involuntários só podem tornar piores os
homens.
Você é socialista?
O socialismo parece implicar fatalmente na
centralização e na produção em massa, urbana e padronizada. Não sou socialista,
pois vejo em tal sistema muitas ocasiões para o despotismo, muita oportunidade
para os mandões darem vazão à sua mandonice, para os indolentes se submeterem à
servidão.
Então você não apoia o socialismo nem o
capitalismo?
Acho que a solução não está em nenhum desses dois
sistemas.
Em qual, então?
Quem quiser tornar o mundo um lugar adequado terá
que formar um sistema que reduza ao mínimo a quantidade de cobiça, medo, ódio e
dominação – um sistema que proporcione segurança econômica o bastante para
livrar os homens ao menos dessa fonte de preocupação e propriedade o suficiente
para protegê-los de maus tratos por parte dos ricos, mas não demais, para não
deixar que maltratem o próximo.
Interessante… Mas não será fácil.
É claro que não será nada fácil. Nada se pode
fazer de efetivo por alguém que não queira ou não possa colaborar conosco. Por
exemplo, não será possível preservar os homens dos horrores das guerras se não
estiverem dispostos a renunciar aos prazeres do nacionalismo. Será impossível
livrá-los das crises e depressões enquanto eles teimarem em pensar apenas em
termos de dinheiro.
O nacionalismo é tão ruim assim?
O nacionalismo sempre produzirá, pelo menos, uma
guerra a cada geração.
Alguma coisa além da não aceitação do mundo tal
como é, do cinismo e da abstenção de fazer o mal?
A origem de alguns de nossos erros mais fatais
consiste na seriedade mal aplicada.
Por que?
Só devemos levar a sério o que merece ser levado
a sério.
Você mencionou as coisas nas quais acreditamos
equivocadamente: o nacionalismo, a justiça social, a ciência e o amor
romântico. Quanto ao nacionalismo, muito bem – o que disse faz todo o sentido.
Mas pensemos nas outras três coisas. Por que devemos deixá-las de lado?
Não sugiro que as deixem completamente de lado.
Só não lhe deem muita importância. Isto é, a barbárie consiste em pender mais
para um lado do que para outro. Pode-se ser um bárbaro do intelecto, bem como
um bárbaro do corpo… Um bárbaro da alma e dos sentimentos, bem como da
sensualidade. O cristianismo nos fez bárbaros da alma, e agora a ciência nos
está fazendo bárbaros do intelecto.
Faz sentido!
Por falar em barbárie, já ouviu algo mais bárbaro
do que a tosse? Ela não deveria ser sequer permitida em uma sociedade
civilizada.
Verdade. Agora vamos falar de sua área de
especialidade – ou seja, a literatura.
Tenho uma relação bastante complicada com a
literatura.
Como assim?
Eu a aprecio, mas reconheço seus defeitos.
Como por exemplo…
Um dos maiores defeitos da chamada boa literatura
é que, aceitando a escala convencional de valores, respeitando o poder e a
posição social, admirando o sucesso, considerando razoáveis as preocupações, em
geral tolas, dos estadistas, amantes, homens de negócios e dos ansiosos por
subir na escala social (numa palavra, levando a sério tanto as causas dos
sofrimentos quanto os próprios sofrimentos), ela contribui para perpetuar a
desgraça, aprovando, implícita ou explicitamente, uma longa lista de ideias,
sentimentos e práticas que só podem resultar em desgraça. A pior parte é que
tais coisas são expressas na linguagem mais magnífica e persuasiva – de modo
que, mesmo quando uma tragédia acaba mal, o leitor, hipnotizado pela eloquência
da peça, sente-se propenso a pensar, ainda assim, que tudo aquilo era, de algum
modo, nobre e compensador.
O que, na sua opinião, não são.
Considerados desapaixonadamente, nada podia ser
mais sórdido do que os temas de Fedra, de Otelo, de O Morro dos Ventos Uivantes
ou de Agamêmnon. Mas, como a maneira de exibir estes temas é sublime e
empolgante no mais alto grau, o leitor ou espectador fica na convicção de que,
a despeito da catástrofe, “tudo estava muito bem nesse mundo”, o mundo
demasiadamente humano que produzira aquela tragédia.
Alguma sugestão literária?
Leia o que quiser, desde que acrescente algo à
sua vida. Muitas vezes, lemos um livro todo e não achamos uma simples frase de
que nos possamos lembrar para fazer uma citação. Eu pergunto: para que servem
livros assim?
Em seus livros – especialmente em Admirável Mundo
Novo e em Contraponto – você tratou de temas como a devassidão. Falemos um pouco
disso.
Creio que há na devassidão alguma coisa
intrinsecamente monótona, alguma coisa absoluta e desesperadamente triste.
Como assim?
Ouso dizer que as pessoas mais promiscuamente
devassas são muitas vezes aquelas a quem a natureza cruel negou talento para a
galanteria. Privadas, por uma frigidez constitucional, do gozo do prazer, vivem
em eterna rebeldia contra seu destino. A força que as leva a multiplicar o
número de suas aventuras galantes não é a sensualidade, e sim a esperança. Isto
é, não o desejo de reiterar a experiência de um prazer conhecido – e sim a
aspiração a uma felicidade vulgar e mui gabada, que nunca tiveram a fortuna de
experimentar.
Interessante!
A maioria dos devassos é assim não porque goste
da devassidão, mas sim porque sente mal-estar quando se priva dela. O hábito
transforma os gozos peculiares em necessidades monótonas e cotidianas. O homem
que adquiriu o hábito das mulheres ou da genebra, de fumar cachimbo ou de
suportar a flagelação, acha tão difícil viver com os seus vícios como viver sem
pão e água.
Mesmo quando a prática do vício tornou-se tão
despida de sensação como comer um pedaço de pão ou beber um copo de água?
É assim que os vícios funcionam. O viciado desce,
infatigável e desesperadamente, ao vale das sombras na sua mortezinha
particular, à procura de algo diferente de si mesmo, algo diverso e melhor que
a vida que vive miseravelmente, na condição de pessoa humana, no mundo hediondo
das pessoas humanas. Desce e, ou violentamente, ou em deliciosa inércia, morre
e se transfigura – mas morre apenas por algum tempo, só se transfigura
momentaneamente. Após a pequena morte, dá-se a pequena ressurreição: ressurge-se
da inconsciência, da excitação auto-aniquiladora, para a mísera consciência da
solidão, da fraqueza, da indignidade, para uma separação mais completa, um
senso mais agudo da personalidade. E, quanto mais aguda a sensação da
personalidade separada, mais urgente a necessidade de uma nova experiência
paliativa de morte e transfiguração… O vício alivia, mas, aliviando, aumenta as
dores que necessitam de alívio.
A condição de pessoa humana, no mundo hediondo de
pessoas humanas, é sempre – obrigatoriamente – miserável?
Claro. No plano humano, os homens vivem imersos
em ignorância, concupiscência e temor. Disto resultam alguns prazeres
temporários, muitas misérias duradouras e frustração final.
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