Ler em 2040 será um anacronismo, quer por razões
tecnológicas quer por já não termos capacidade de concentração. A vingança
póstuma do livro é que, por sua vez, a telepatia eletrônica destronará o
YouTube e o iPad.
Por Hernán Casciari - Jornal El Mundo -
Madri
Participo de um simpósio de pessoas cultas, no México. Convidaram-me
para dissertar sobre o futuro do livro. Embora a sala esteja repleta de
personalidades eminentes ainda consigo um lugar na segunda fila. Como a minha
apresentação é no dia seguinte, entretenho-me ouvindo o orador, mas depressa me
disperso. No século 20 conseguia concentrar-me sem problemas. Podia ler e
escrever durante horas ou assistir a longas conferências e ouvi-las
atentamente. Agora, não.
Pouco a pouco foi acontecendo qualquer coisa. Ao princípio, não tinha
importância e não me apercebi. É como um sapo que nada num tacho de água morna
sob o qual foi aceso o lume. O sapo não se dá conta de que a água começa a
aquecer e não tenta fugir. Quando finalmente se apercebe do perigo da ebulição
já é tarde demais: o sistema nervoso deixa de ter capacidade de resposta e o
sapo não consegue saltar de lá para fora. Aconteceu-me qualquer coisa deste
gênero. Já não consigo concentrar-me meia hora sem ir consultar as últimas
novidades na internet, sem olhar para outro lado, sem passar o dedo no iPad. A
minha cabeça divaga e eu me evaporo.
A apresentação dura há um quarto de hora. Olho
para a quantidade de páginas que o conferencista ainda tem para ler e tento
perceber quanto tempo falta. “Dez minutos? Quinze? Talvez vinte. Será que ao
menos o texto está impresso em helvética corpo 16? Espero que tenham utilizado
dupla entrelinha". Ao fim de 20 minutos acontece um fenômeno peculiar:
todos os membros da assistência tiram os celulares do bolso e ligam para alguém
a pretexto de qualquer coisa.
Vidrados no celular
Normalmente fazemos de conta que vamos publicar no Twitter uma frase
notável do orador. Na realidade, o que queremos é ver a telinha acesa. Isso
evita que nos sintamos ligados a outra coisa: é só para dar uma olhada nas
mensagens do correio eletrônico, saber que horas são no nosso país de origem,
saber o que dizem nas redes sociais os que não tiveram oportunidade de assistir
a este simpósio no México.
Entretanto, a apresentação segue o seu curso e, para cúmulo da desgraça,
o orador é muito inteligente. Tento retomar o fio da meada do discurso, mas o
celular vibra na minha mão para me trazer novas informações tão urgentes como
fúteis (que jogadores do Barcelona vão jogar contra o time do Real Madrid, por
exemplo). Quando fico sabendo que a apresentação será publicada integralmente
na internet daqui a alguns dias, e que a poderei ler na próxima semana, começo
a pensar noutra coisa e já sem sentimento de culpa.
O futuro do
papel
Penso que, no dia seguinte, estarei no lugar do pobre orador. Terei de
dissertar sobre o futuro do livro durante uma hora, ouvir burburinho ao fim de
um quarto de hora e ver aparecer celulares na plateia cinco minutos depois de
começar a falar.
Digo a mim mesmo que, então, poderei admitir, perante a plateia, que o
futuro do livro me é absolutamente indiferente. Idem para o futuro do
papel, da mídia eletrônica, da coexistência dos dois, da morte de um ou de
ambos. idem para o que é saber se as pessoas leem menos ou mais que há trinta
anos, ou como os autores, os jornalistas e os editores irão fazer para manter o
seu nível de vida e pagar as prestações quando toda a gente obtiver conteúdos
gratuitos na internet e a indústria não se importar com isso. É-me indiferente.
A minha filha é uma criança da Era digital. Às vezes digo a ela: “Filha, pega neste livro de quando eu era pequeno, sente o cheiro da tinta e do papel”. Ele me devolve o livro e diz: “*Que horror, cheira mal!”
O que me importa agora, o que me incomoda terrivelmente é já não
conseguirmos nos concentrar. É isso que me inquieta. É o fato de não
conseguirmos ler, escrever e ouvir os outros.
Nesta sala, no decorrer do simpósio somos todos muito inteligentes e
estamos muito acordados. Não somos pessoas que não leem. Somos uma elite
de pessoas preocupadas com o futuro da palavra impressa. Na sala estão
editores, bibliotecários, escritores, humanistas, livreiros, jornalistas.
Em outras palavras, descemos à terra para refletir sobre o que devemos
fazer para que os outros leiam. Os outros. Para nós está tudo aparentemente
bem. Nós que participamos de seminários e simpósios, nós que não temos
problemas desse tipo... Ou será que temos? Será que lemos como antes? Com a
mesma concentração?
Perdidos na
conferência
É isso mesmo: acho que não. Quando estamos sozinhos num quarto de hotel,
neste simpósio ou em qualquer outro lugar, a maioria de nós, os iluminados, já
não conseguimos nos concentrar nem mesmo no que nos estimula. E seguramente não
são os livros, digitais ou em papel. Então, que fazemos com o nosso tempo
livre? Eles, os outros participantes não sei, mas eu, se tiver de trazer a lume
o meu histórico de navegação na internet de ontem à noite no hotel,
ficarei muito envergonhado.
O conferencista continua a ler. Faltam-lhe apenas dez páginas para
terminar e nós estamos tristes e enfadados nas nossas cadeiras de veludo.
De repente penso numa coisa horrível. Imagino que numa realidade
paralela somos pouco a pouco transformados em bulímicos e anoréxicos, sem conseguirmos
evitá-lo. Por causa disto organizamos simpósios para saber se é melhor cozinhar
em fogões tradicionais ou em microondas.
Somos pele e osso, temos os olhos encovados e
padecemos de problemas alimentares, mas dizemos alto e bom som que “mesmo que o
micro-ondas seja o futuro, o forno a lenha nunca morrerá completamente".
E ninguém neste mundo paralelo, questiona o que vai fazer para voltar a
provar comida com prazer. Nem pergunta como evitar que as crianças vão
para os banheiros vomitar escondidas. Muito menos como poderemos voltar a
gostar de comer de boca aberta sem nos preocuparmos onde os alimentos foram
cozinhados.
A minha filha é uma criança da Era digital. Não tem a menor nostalgia
dos livros em papel. Às vezes lhe digo: “Filha, pega este livro de quando
eu era pequeno. Sente o cheiro da tinta e do papel de vez em quando”. Ela me
devolve o livro, dizendo: “Que horror, cheira mal!” Tem razão. Tenho inveja da
falta de nostalgia do papel da minha filha. É mais feliz ao ver vídeos no
YouTube ou utilizando aplicações do iPad do que lendo livros ou revistas. Até
há pouco tempo isso me preocupava. Agora, percebo o meu erro, e a coisa me
é indiferente. Não acredito que, daqui a trinta anos, o mundo continue a
considerar a concentração uma virtude.
Somos o sapo na água fervente. É tarde demais para saltar fora do tacho
e nos salvar.
Em 2040, quanto a minha filha for da minha idade,
talvez seja convidada para o III Simpósio Mundial dos Pendrives Telepáticos.
Nessa altura, os conteúdos culturais entrarão na nossa cabeça através de uma
entrada USB em menos de um minuto: “Bzzzzzz! Ler Dom Quixote ou o Lusíadas vai
demorar tanto como hoje para se copiar um arquivo. Em vinte segundos, o
utilizador terá dentro da cabeça as aventuras de Alonso Quijano (o Quixote) sem
necessidade de ler o livro. Então a minha filha irá a este simpósio e sentirá
nostalgia do iPad, dos tempos em que as pessoas ainda viam vídeos no YouTube
durante nove minutos sem pestanejar...
Fonte: www.luispellegrini.com.br
Via Brasil 247