Por Luciana
Hidalgo
Dentro de todo
estrangeiro grita um exilado. Seja por motivo político, econômico, social ou
mesmo afetivo, estrangeiros-exilados carregam a beleza e a melancolia do
desterro mundo afora, peregrinos, migratórios, deixando o familiar rumo ao
estranho. São heróis, anti-heróis expatriados que um dia se foram, a rodar
mares e continentes.
Escrevi o
romance Rio-Paris-Rio para
falar desse estar-no-mundo-entre-mundos. Do ir-e-vir entre culturas. Mais
precisamente daqueles que preferiram o exílio ao terror imposto por ditaduras,
como a que assolou o Brasil nos anos 1960/70.
Quis pensar
ficcionalmente os efeitos do autoritarismo que regeu militarmente gestos,
afetos, rotinas de toda uma população, dia a dia, de forma criminosa e
silenciosa. Aí incluídos os exilados. Afinal, a travessia de uma fronteira nem
sempre a apagava, pelo contrário, só a realçava.
Maria e Arthur
são os meus personagens (e companheiros) nessa ficção que margeia extremos,
equilibrando-se entre amor/política, tropical/temperado, esquerda/extrema-direita.
Inventei-os jovens, bonitos, livres, crescidos no ingênuo Rio de Janeiro
pré-golpe de 1964, cada qual numa família, cada família em seu status quo. E os
fiz se encontrar – e flanar – na mítica Paris, uma das mais belas cidades do
mundo, a mais literária, simétrica, cenográfica.
Saint-Michel,
Saint-Germain-des-Prés, Pont des Arts. Fiz os dois perambularem pelos bulevares
e ruas tortas que levam ao Sena, revolucionados, um no corpo do outro.
Corpo-cidade, corpo-exílio. Na arrogância de suas juventudes, Maria e Arthur
dão o passado (infância, família, ditadura) como enterrado e passam a fazer de
um o continente do outro, fora de toda cartografia, de toda política.
O tempo, no
entanto, passa. E eles aos poucos se dividem entre a explosão de liberdade do movimento
de Maio de 68, que vivem intensamente ao lado dos estudantes franceses, e a
repressão no Brasil, que nunca deixou de assombrá-los. Porque ditaduras são
assim, totalitárias, pegajosas, ainda que à distância de um ou dois oceanos.
Nesse
exercício de escrever sobre o estrangeiro, contei com a minha própria vivência,
já que fui eu mesma estrangeira (e em Paris). Trilhei cada pedaço de rua
descrito no romance. Frequentei cafés e bibliotecas que meus personagens um dia
frequentariam. Fiz um pós-doutorado em literatura na mesma Sorbonne onde Maria
estudaria filosofia. Escolhi um bonito prédio na rua Cujas, no Quartier Latin,
onde Maria e Arthur pudessem morar. E sempre que eu passava pelo edifício,
espichava o olhar até o sexto andar, a tempo de vê-los na janela, cigarro na
boca, fumando suas alegrias e angústias.
Esse exercício
de transpor a cidade do início do século XXI para a dos anos 1960/70 me deu por
muitos anos a sensação de flanar por cidades superpostas, a real e a ficcional,
caminhando num espaço e num tempo só meu – que dividiria com o leitor, um dia,
no instante da leitura. Isso só foi possível por Paris ser uma cidade que pouco
muda, num país que pouco muda, resistente, apegado aos seus monumentos,
tradições, às suas cores pastel. Aliás, somente graças a todo um histórico de
resistências, ainda temos Paris.
Isso não faz
desse romance uma autoficção, bien entendu. A história de Maria e Arthur é
ficção pura, mas flerta com a autoficção O minotauro, de Jorge Bastos, que li
há muitos anos, de uma verdade e de uma estética fascinantes. Trazia um tanto
da efervescência da época, daquela juventude capaz de mudar tudo o que até
então se pensava como juventude.
Gostaria de
ter sido jovem como Maria e Arthur naqueles anos, mas não. Quando nasci, o
Brasil já era governado por militares e passei a infância numa bolha de
alienação. Com o medo imposto à população, a censura à imprensa e o boicote a
toda forma de arte minimamente reflexiva, eu assistia a desenhos animados com
heróis japoneses bizarros na hora do almoço e novelas alienantes na hora do
jantar.
Lembro-me
principalmente do quanto odiava Educação Moral e Cívica, matéria dada na escola
num tom de lição de moral patriótica sob ordem militar. Nada aprendia com
aquelas aulas, ao contrário de outras que me estimulavam a inteligência. Ainda
que ignorasse o que acontecia ao redor, desconfiava.
Somente quando
acordei para a adolescência, vi um dia, numa banca de jornal, uma revista que
estampava a foto do jornalista Vladimir Herzog enforcado numa cela. Foi quando
soube do assassinato de brasileiros que ousaram resistir. Tive muita vergonha,
por mim, por todos nós.
Com o tempo vieram mais informações. Presos eram torturados, presas eram
estupradas por representantes do mesmo governo que me dava lição de Moral e
Cívica. A cada relato, eu ficava cada vez mais grata a todos os que resistiram,
de uma forma ou de outra.
Muito já se escreveu sobre o período da ditadura, não faltando ótimos
livros que li e reli numa pesquisa incansável. Na França, consultei todo tipo
de arquivo até exaurir o tema Maio de 68.
Mas ficção é ficção. No final das
contas, Rio-Paris-Rio traz uns 2% a 3% de toda
essa pesquisa. Não se trata, portanto, de um romance sobre a ditadura, sendo
esta um pano de fundo. Mais do que um mero pano de fundo, um espectro, que está
em tudo, aqui e ali, no Rio e em Paris, nos genes e corpos dos personagens, sem
que se deem conta. Um espectro tão sutil quanto a Moral e Cívica que tentaram
me impor goela abaixo na escola e que, desobediente, não aprendi. Pelo
contrário, escrevi Rio-Paris-Rio, livro provavelmente iniciado
naquelas aulas, naquele colégio, quando a ditadura regia meus gestos, afetos,
rotinas, e de alguma forma eu já resistia.
Luciana Hidalgo é escritora e
doutora em Literatura Comparada (Uerj), com pós-doutorado na Université
de la Sorbonne Nouvelle (Paris 3), na França, onde morou durante vários anos.