Aos Mestres, com carinho!

Aos Mestres, com carinho!
Drummond, Vinícius, Bandeira, Quintana e Mendes Campos

quarta-feira, 24 de agosto de 2022

POLÊMICA: Lista dos 10 melhores poemas de todos os tempos, de autores estrangeiros, segundo o blog “SNC,PMG”, em ordem alfabética por autor. Toda lista é polêmica (risos) esta é a minha, espero que alguém goste.

 



O GATO DE KAFKA

 

Todas as sextas-feiras,

aos finaizinhos das tardes,

assomam em mim vibrantes explosões da alma.

Serão também explosões do corpo?

 

Um enxame de flores, sensações e insetos,

desembocam num rio que trago escondido no peito.

Apenas Emília,

amor maior da minha infância, teve acesso às suas águas.

 

Mas Emília,

branca como um anjo de uma asa só,

morreu...

 

Um dia, depois ler Kafka,

tomar uma limonada e sonhar:

transformou-se em pássaro.

Um pássaro mais lindo

que o amanhecer em Pontas de Pedra;

mais lindo que os sorrisos

de Claras, Rosas, Lourdes...

Inebriante pássaro, mais lindo que o próprio sorriso de Emília!

 

Mas uma noite, enquanto cantava,

um gato a devorou...

Meu Deus...

Apenas Emília e o mar faziam-me felizes.

Nessas horas, nesses instantes de lembranças, saudades e medos,

vibro-me, uma corda retesada, um epilético,

um quase morto.

 

Autor: Arthur Rimbaud (Francês, 1854/1891)

 

*****

 

MINHA INFÂNCIA

 

Meus sonhos eram povoados

por lobos maus e padres

que comiam criancinhas,

mas minha mãe de criação, Lia,

contava estórias para eu, minino, dormir.

Coçava minhas costas e dizia:

dorme! Lobo mau não vem aqui!

Padre está rezando missa!

 

Minha avó Lídia penteava meus cabelos,

assim que, minino, saia do banho.

Mamãe me achava tão lindo, um rei.

Meu pai me sonhava

juiz ou médico, autoridade.

O mundo era enorme,

minha casa imensa,

a rua sem fim:

transbordavam-me os sonhos!

 

Autor: Basil Bunting (Anglo-estadunidense, 1900/1985)

 

*****

 

OS CONSELHOS DE MINHA AVÓ

 

Minha avó dizia:

minino, não se brinca com as coisas de Deus,

pois isto é pecado, e ele castiga,

castiga, sim Senhor!

 

Mas sabe como é minino,

brincalhão, curioso...

e o minino brincou.

 

Deus passou a ser Sued,

passou a ser assunto de piadas,

que eu não resistia, e contava,

e contava, e contava.

 

Além de outros pecados,

mais cabeludos, 

como “bater” punheta,

pensando na beleza das pernas

da minha linda professorinha

de letras,

que um dia nos leu Os meninos carvoeiros,

do poeta Manuel Bandeira,

ai, senti tanta dor!

 

Tudo isso até minino cansar de brincar!

E virar homem...

 

E um dia, já crescido e cheio de interrogações.

O minino homem pensou,

lembrando-se das palavras da avó,

petrificado, com medo, suando:

será que por que brinquei com deus ele me castigou?

 

Será por que brinquei com ele,

Deus destruiu o Iraque,

e enforcou o Saddam?

 

Será por que brinquei com ele,

Deus destruiu a Líbia

e humilhou o Kadafi?

 

Será que pelos meus pecados

quer exterminar os palestinos, como Hitler

queria exterminar os judeus

ou como a Europa quer exterminar os ciganos?

 

Deus me perdoa, perdoa, perdoa!

Com todas as forças e fé,

- fé que não tenho -

perdoa o minino,

que não queria tomar banho,

por que estava jogando bola de gude,

botão de mesa,

pinhão ou conversando safadeza

com outros mininos, amigos de infância,

que também não ouviam os conselhos das avós.

 

Foi só uma brincadeirinha de nada,

coisa de minino safado.

 

Não deixai mais, deus, pelas minhas faltas e pecados,

e por não seguir os conselhos de minha avó,

que milhões morram de fome, de sede, de guerras, de doenças, de indiferença...

 

A mim bastam a pólio e a depressão, além da velhice calhorda,

que me deixa numa cadeira de rodas,

e o pau, que não quer mais subir!

 

Apaga, meu anjo da guarda, apaga,

do teu caderninho,

os meus pecadinhos de minino,

por favor, imploro, apaga.

 

Depois mostra a deus, teu criador,

que eu não preciso mais ser castigado,

punido, torturado, enlouquecido,

com a dor do meu próximo,

que eu sei, é culpa minha,

pelos meus pecados,

por não acreditar na minha avó!

 

Santo anjo do senhor,

meu zeloso guardador,

interceda por mim,

pois, com todo o respeito,

parece que deus dorme, ronca e peida

sobre os vermes que criou.


Autor: E. E. Cummings (Estadunidense, 1894/1962) 


*****

 

NAVEGANDO COM MAQUIAVEL

 

Primeiro milagre:

ser cristão e capitalista, tudo junto, na mesma cama.

Aposto que nem o cão tinhoso,

ardiloso e esperto, haveria de ter imaginado tal casamento.

 

Sedentos, de luxo e riqueza, como no samba,

não renegam mordomias e prazeres, a qualquer custo,

e buscam prolongar a vida através da medicina da morte,

da “Big Pharma”, da ciência, do chip, da robótica.

 

Buscam a promessa de outra vida, além da única vida que nos cabe,

através de um deus, que pensam enganar em ritos e roubos!

Mas para sorte desses “cristãos”,

Deus foi criado à imagem e semelhança dos homens, pode?

 

Autora: Emily Dickinson (Estadunidense, 1830/1886)

 

*****

 

 UÍSQUE COM GELO

 

Tomo um gole cavalar de uísque com gelo.

Arrepio-me e penso:

soma de Huxley... Sorrio.

Busco assim te esquecer,

mas, nada adianta.

 

Estais em meu corpo, em meus poros,

nas lembranças de todos os meus fluidos

e aromas.

Em minha memória e no meu esquecimento:

tinta que mancha o papel;

diamante que corta o vidro;

aroma de petrigrain que invade e limpa meus pulmões.

 

Os poucos poemas que escrevo, nascem a fórceps.

Deixam-se assim capturar no anseio de que não

abram-se para mim as porta da loucura.

Sou grato!

 

Repetem eles, sessenta e duas mil vezes,

em vozes altas,

um mantra: Ela voltará! Ela voltará! Ela voltará!

E em forma de sussurro, respondo ou pergunto:

será? Ela, onde está agora?  

 

Impregnada em minhas lembranças,

em minha visão.

Tenho os olhos vazados para tudo o mais.

 

Em minha cadeira de rodas e obsessões cotidianas,

persigo-te, atriz, em teus filmes, em tuas novelas,

como um vilão mentecapto.

 

Enquanto ganho pouco, e trabalho muito, em coisas que não me realizam,

navego na selva do trânsito e no excesso de bromazepam;

no meu velho carro e no cartão sem limite;

penso em coisas que nada tem a ver com o meu – nosso? – amor.

Procuro distrair-me, enganar meu cérebro,

minhas reações químicas,

minhas lembranças holográficas.

 

A salvação não está visível,

sombras e vultos se avistam,

a tua não presença

tem vida própria, alma,

é palpável,

e vive a assombrar-me,

um sinistro riso de desdém,

com sádico prazer.

 

Fantasmas, vultos, espectros,

pesadelos dos quais não me acordo,

e que insistem em se mostrar, em se sonhar.

Olho aflito a garrafa vazia de uísque

onde me banho, me entorpeço, me alieno,

para tentar ser o que sou,

sem abandonar o espetáculo,

- palhaço -

antes do seu final,

com um tiro no peito,

- Maiakovsky? –

que não constava do script.

 

A bomba de Hiroshima,

o estupro de Nanquim,

o holocausto judeu,

o holocausto palestino,

a covardia de Pinheirinhos...

Nada me tira a tua imagem sorrindo, gargalhando,

nua com o copo à mão

e um poema a se desenhar em teu corpo,

cada vez que te despia.

 

Neve, o teu rosto branco, e sorrisos, e dentes.

Vermelha, a cor da tua boca e mamilos e vagina.

 

O doce e meigo carinho,

os afagos amigos, os abraços de compaixão,

para os que choram, para os que amam

para os que não amam.

Para os indefesos,

para os animais, nossos irmãos.

 

Revolto-me e grito,

um grito que se ouvirá silenciosamente

pois grito para mim:

por que me assombras, atriz,

no momento em que minha vida

esta se pondo, feito o sol

no oeste?

 

Autor: Ezra Pound (Estadunidense, 1855/1972)

 

*****

 

HAVERIA MAIS ENCANTOS?

 

E se tudo fosse apenas o sorriso de Emília e o bater

leve do vento em nossos corpos?

E as lembranças caminhassem para orgasmos:

rápidos lances da infância,

haveria mais encantos?

Quantos prantos não se formariam tempestades?

Não creio apenas no simples fardo do existir,

mas também no valor da morte:

melhor que a eterna solidão.

 

Autor: Jacques Prevert (Francês, 1900/1977)

 

*****

 

COMO FAZER UM POEMA

 

Primeiro, finja-se de morto,

distraído, o idiota da aldeia.

E como quem não quer nada,

agarre a perninha do poema.

Segure-a de leve, puxando-a com carinho.

Deite o poema no papel, sorria.

 

Balance o pequeno poema recém-nascido,

examine-o: cada letra, cada palavra, cada som, cada silêncio.

 

Banhe-o com a palavra solidariedade,

que só pode ser encontrada no vocabulário do socialismo.

 

Dispa-se de qualquer preconceito:

entregue-o ao leitor.

 

Autor: Konstantinos Kaváfis (Grego-otomano, 1863/1933)

 

*****

 

SONETO DA TRISTE HERANÇA

 

Andava triste, por nunca conseguir um agente para os meus poemas,

tudo parecia tão fácil na biografia dos poetas mortos.

Peguei o meu copo com uísque, entre as trêmulas mãos dos meus cinquent’anos,

pensei num suicídio ou num bolero: melhor um gole.

 

Busquei refúgio nos meus livros, tantos deles desertaram a esta hora da batalha,

mas aqueles que ficaram diante de minha decadência anônima, animaram-me.

Abriu-os, livres como um corpo que dança ou se joga ao infinito espaço,

o tempo, instrumento de nossas alucinações, engana-nos na sua imensidão.

 

O gelo, o copo, a mão trêmula, a ingestão da substância efêmera,

como efêmera é a nossa existência posta aos cinco sentidos,

animal faminto, o homem, a mulher, a libido, o som, o que é desvairado.

 

Abro um livro, um poema de Quintana, por que o busco: ingrata solidão, uísque barato?

Traças, suores, medos de uma nova ditadura, a falta de água e um novo pré 39,

sem a Santa Madre URSS, sem os maquis, sem Apolônio de Carvalho.

 

Autor: Li T'ai Po (Chinês, 701/762)


 

*****

 

INEXISTIR

 

Há poemas 

que se negam a nascer

por inteiro.

 

Mostram-se apenas um bracinho,

uma perninha,

um sorriso.

Apenas o necessário para que nos apaixonemos.

 

Mas negam-se a nascer...

O motivo?

Sabe-se lá...

 

Travessuras, talvez.

 

Tenho vários desses quase rebentos.

Habitam as minhas gavetas,

dentre os meus livros,

em folhas amareladas 

e pintadas com meus rabiscos,

à espera de que amadureçam.

 

Mas é inútil.

São travessos.

Apenas pequenos poemas travessos.

 

Autor: Omar Khayyam (Iraniano, 1048/1131)

 

*****

 

ESPELHOS, EM TRÊS REFLEXOS

 

REFLEXO I

 

A primeira vez que um espelho mágico 

chamou a minha atenção,

iam-se lá cinco ou seis anos de vida.

 

Foi na casa de minha tia Nete,

um espelho grande,

quase do tamanho de uma porta,

um gigante!

Fiquei fascinado.

 

Olhava-o por vários minutos

esperando que meu reflexo

errasse algum movimento da coreografia

dos meus braços e caretas.

Imaginava se haveria um mundo dentro

da masmorra onde se aprisionara o meu reflexo,

com certeza influência de Alice.

 

Era bom o mundo,

eram bons os sonhos,

criança,

não imaginava o terror da existência. 

 

REFLEXO II

 

Usava barbas na adolescência,

para parecer mais velho para as meninas.

 

Diante do espelho

aparava o excesso de pelos

e desenhava algumas linhas.

 

Apesar da poliomielite,

via, na minha imagem refletida,

um jovem forte e bonito,

alegre e disposto a lutar por um mundo melhor.

 

Vez ou outra,

quando alguma lágrima nascia,

em virtude de algum percalço,

ou das pequenas e grandes derrotas

que se iam acumulando

no meu lixão da vida,

o espelho, de alguma forma,

avisava-me, você é apenas um,

existem bilhões no planeta.

 

O fracasso na música,

- contrabaixo, violão, piano-

um poeta que ninguém lia,

um casamento aos dezoito anos,

a necessidade de trabalhar para sustentar meu rebento,

o corre-corre da faculdade,

as paixões fora do casamento,

fizeram-me esquecer da magia do espelho

que vivi aos cinco ou seis anos.  

 

REFLEXO III

 

Acabo de completar cinquenta e um anos,

olho no espelho e não me reconheço.

Os sonhos de mudar o mundo através do socialismo

ainda persistem mais fortes do que nunca,

mas sei que já não será no meu tempo,

talvez no tempo dos meus filhos

ou no tempo dos meus netos.

 

No espelho do meu banheiro,

vejo um homem com nuvens brancas nos cabelos,

os sulcos no meu rosto lembram as rotas abertas nas selvas,

a facão, à foice e a martelo.

 

O sorriso meio sem graça,

os dentes amarelados,

- efeito dos cigarros, do bom álcool e do invisível tempo -

indicam que a vida passou,

e passa, enquanto escrevo este poema,

no dia do meu aniversário.

 

Junto aos amigos,

em companhia do velho álcool,

remédio para as dores reumáticas,

e para grandes derrotas e perdas da vida,

lembramos, emocionados:

a queda do muro de Berlim,

a capitulação da URSS,

o neoliberalismo,

que quase me levou à loucura,

por minha impotência,

por nada poder fazer,

pela revolução que não vinha.

 

A vitória de Lula e a esperança de uma sociedade socialista,

a decepção.

O medo do retrocesso via judiciário...

 

Evito conversar com minha imagem refletida

naquele artefato mágico da infância.

 

As lutas viraram rotinas, e não são mais tão épicas,

- até conseguir cortar as unhas dos pés,

já é uma grande vitória.

Os remédios que me salvam,

- também da depressão -

são as amizades,

as conversas na mesa de bar,

e continuar sonhando, sempre,

um Sancho Pança, orgulhoso,

cevado a antidepressivos e ansiolíticos.

 

É recorrente lembrar,

- e me faz rir - 

a minha descoberta

aos cinco ou seis anos,

na casa da minha Tia Nete:

o espelho mágico.

 

E como na cantiga de minha infância:

esperar, esperar, esperar,

até a morte chegar!

quem sabe, como um presente,

no dia do meu próximo aniversário.


Autor: Sebastião Alba (Moçambicano, 1940/2000)