O GATO DE KAFKA
Todas as
sextas-feiras,
aos finaizinhos
das tardes,
assomam em mim
vibrantes explosões da alma.
Serão também
explosões do corpo?
Um enxame de
flores, sensações e insetos,
desembocam num
rio que trago escondido no peito.
Apenas Emília,
amor maior da
minha infância, teve acesso às suas águas.
Mas Emília,
branca como um
anjo de uma asa só,
morreu...
Um dia, depois
ler Kafka,
tomar uma
limonada e sonhar:
transformou-se em
pássaro.
Um pássaro mais
lindo
que o amanhecer
em Pontas de Pedra;
mais lindo que os
sorrisos
de Claras, Rosas,
Lourdes...
Inebriante pássaro,
mais lindo que o próprio sorriso de Emília!
Mas uma noite,
enquanto cantava,
um gato a
devorou...
Meu Deus...
Apenas Emília e o
mar faziam-me felizes.
Nessas horas,
nesses instantes de lembranças, saudades e medos,
vibro-me, uma
corda retesada, um epilético,
um quase morto.
Autor: Arthur Rimbaud
(Francês, 1854/1891)
*****
MINHA INFÂNCIA
Meus sonhos eram
povoados
por lobos maus e
padres
que comiam
criancinhas,
mas minha mãe de
criação, Lia,
contava estórias
para eu, minino, dormir.
Coçava minhas
costas e dizia:
dorme! Lobo mau
não vem aqui!
Padre está
rezando missa!
Minha avó Lídia
penteava meus cabelos,
assim que, minino, saia do banho.
Mamãe me achava
tão lindo, um rei.
Meu pai me
sonhava
juiz ou médico,
autoridade.
O mundo era
enorme,
minha casa
imensa,
a rua sem fim:
transbordavam-me
os sonhos!
Autor: Basil Bunting (Anglo-estadunidense, 1900/1985)
*****
OS CONSELHOS DE MINHA AVÓ
Minha avó dizia:
minino, não se brinca com as coisas de Deus,
pois isto é pecado, e ele castiga,
castiga, sim Senhor!
Mas sabe como é minino,
brincalhão, curioso...
e o minino brincou.
Deus passou a ser Sued,
passou a ser assunto de piadas,
que eu não resistia, e contava,
e contava, e contava.
Além de outros pecados,
mais cabeludos,
como “bater” punheta,
pensando na beleza das pernas
da minha linda professorinha
de letras,
que um dia nos leu Os meninos carvoeiros,
do poeta Manuel Bandeira,
ai, senti tanta dor!
Tudo isso até minino cansar de
brincar!
E virar homem...
E um dia, já crescido e cheio de interrogações.
O minino homem pensou,
lembrando-se das palavras da avó,
petrificado, com medo, suando:
será que por que brinquei com deus ele me castigou?
Será por que brinquei com ele,
Deus destruiu o Iraque,
e enforcou o Saddam?
Será por que brinquei com ele,
Deus destruiu a Líbia
e humilhou o Kadafi?
Será que pelos meus pecados
quer exterminar os palestinos, como Hitler
queria exterminar os judeus
ou como a Europa quer exterminar os ciganos?
Deus me perdoa, perdoa, perdoa!
Com todas as forças e fé,
- fé que não tenho -
perdoa o minino,
que não queria tomar banho,
por que estava jogando bola de gude,
botão de mesa,
pinhão ou conversando safadeza
com outros mininos, amigos de
infância,
que também não ouviam os conselhos das avós.
Foi só uma brincadeirinha de nada,
coisa de minino safado.
Não deixai mais, deus, pelas minhas faltas e pecados,
e por não seguir os conselhos de minha avó,
que milhões morram de fome, de sede, de guerras, de doenças, de
indiferença...
A mim bastam a pólio e a depressão, além da velhice calhorda,
que me deixa numa cadeira de rodas,
e o pau, que não quer mais subir!
Apaga, meu anjo da guarda, apaga,
do teu caderninho,
os meus pecadinhos de minino,
por favor, imploro, apaga.
Depois mostra a deus, teu criador,
que eu não preciso mais ser castigado,
punido, torturado, enlouquecido,
com a dor do meu próximo,
que eu sei, é culpa minha,
pelos meus pecados,
por não acreditar na minha avó!
Santo anjo do senhor,
meu zeloso guardador,
interceda por mim,
pois, com todo o respeito,
parece que deus dorme, ronca e peida
sobre os vermes que criou.
Autor: E. E. Cummings (Estadunidense, 1894/1962)
*****
NAVEGANDO COM
MAQUIAVEL
Primeiro milagre:
ser cristão e
capitalista, tudo junto, na mesma cama.
Aposto que nem o
cão tinhoso,
ardiloso e
esperto, haveria de ter imaginado tal casamento.
Sedentos, de luxo
e riqueza, como no samba,
não renegam
mordomias e prazeres, a qualquer custo,
e buscam
prolongar a vida através da medicina da morte,
da “Big
Pharma”, da ciência, do chip, da robótica.
Buscam a promessa
de outra vida, além da única vida que nos cabe,
através de um
deus, que pensam enganar em ritos e roubos!
Mas para sorte
desses “cristãos”,
Deus foi criado à
imagem e semelhança dos homens, pode?
Autora: Emily Dickinson (Estadunidense,
1830/1886)
*****
UÍSQUE COM GELO
Tomo um gole
cavalar de uísque com gelo.
Arrepio-me e
penso:
o soma de
Huxley... Sorrio.
Busco assim te
esquecer,
mas, nada
adianta.
Estais em meu
corpo, em meus poros,
nas lembranças de
todos os meus fluidos
e aromas.
Em minha memória
e no meu esquecimento:
tinta que mancha
o papel;
diamante que
corta o vidro;
aroma de petrigrain que invade e limpa meus
pulmões.
Os poucos poemas
que escrevo, nascem a fórceps.
Deixam-se assim
capturar no anseio de que não
abram-se para mim
as porta da loucura.
Sou grato!
Repetem eles, sessenta
e duas mil vezes,
em vozes altas,
um mantra: Ela
voltará! Ela voltará! Ela voltará!
E em forma de
sussurro, respondo ou pergunto:
será? Ela, onde
está agora?
Impregnada em
minhas lembranças,
em minha visão.
Tenho os olhos
vazados para tudo o mais.
Em minha cadeira
de rodas e obsessões cotidianas,
persigo-te,
atriz, em teus filmes, em tuas novelas,
como um vilão
mentecapto.
Enquanto ganho
pouco, e trabalho muito, em coisas que não me realizam,
navego na selva
do trânsito e no excesso de bromazepam;
no meu velho
carro e no cartão sem limite;
penso em coisas
que nada tem a ver com o meu – nosso? – amor.
Procuro
distrair-me, enganar meu cérebro,
minhas reações
químicas,
minhas lembranças
holográficas.
A salvação não
está visível,
sombras e vultos
se avistam,
a tua não
presença
tem vida própria,
alma,
é palpável,
e vive a
assombrar-me,
um sinistro riso
de desdém,
com sádico
prazer.
Fantasmas,
vultos, espectros,
pesadelos dos
quais não me acordo,
e que insistem em
se mostrar, em se sonhar.
Olho aflito a
garrafa vazia de uísque
onde me banho, me
entorpeço, me alieno,
para tentar ser o
que sou,
sem abandonar o
espetáculo,
- palhaço -
antes do seu
final,
com um tiro no
peito,
- Maiakovsky? –
que não constava
do script.
A bomba de Hiroshima,
o estupro de
Nanquim,
o holocausto
judeu,
o holocausto
palestino,
a covardia de
Pinheirinhos...
Nada me tira a
tua imagem sorrindo, gargalhando,
nua com o copo à
mão
e um poema a se
desenhar em teu corpo,
cada vez que te
despia.
Neve, o teu rosto
branco, e sorrisos, e dentes.
Vermelha, a cor
da tua boca e mamilos e vagina.
O doce e meigo
carinho,
os afagos amigos,
os abraços de compaixão,
para os que
choram, para os que amam
para os que não
amam.
Para os
indefesos,
para os animais, nossos
irmãos.
Revolto-me e
grito,
um grito que se
ouvirá silenciosamente
pois grito para
mim:
por que me
assombras, atriz,
no momento em que
minha vida
esta se pondo,
feito o sol
no oeste?
Autor: Ezra Pound (Estadunidense, 1855/1972)
*****
HAVERIA MAIS ENCANTOS?
E se tudo fosse
apenas o sorriso de Emília e o bater
leve do vento em
nossos corpos?
E as lembranças
caminhassem para orgasmos:
rápidos lances da
infância,
haveria mais
encantos?
Quantos prantos
não se formariam tempestades?
Não creio apenas
no simples fardo do existir,
mas também no
valor da morte:
melhor que a
eterna solidão.
Autor: Jacques Prevert (Francês,
1900/1977)
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COMO FAZER UM POEMA
Primeiro, finja-se
de morto,
distraído, o
idiota da aldeia.
E como quem não
quer nada,
agarre a perninha
do poema.
Segure-a de leve,
puxando-a com carinho.
Deite o poema no
papel, sorria.
Balance o pequeno
poema recém-nascido,
examine-o: cada
letra, cada palavra, cada som, cada silêncio.
Banhe-o com a
palavra solidariedade,
que só pode ser
encontrada no vocabulário do socialismo.
Dispa-se de
qualquer preconceito:
entregue-o ao
leitor.
Autor: Konstantinos Kaváfis (Grego-otomano, 1863/1933)
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SONETO DA TRISTE HERANÇA
Andava triste,
por nunca conseguir um agente para os meus poemas,
tudo parecia tão
fácil na biografia dos poetas mortos.
Peguei o meu copo
com uísque, entre as trêmulas mãos dos meus cinquent’anos,
pensei num suicídio
ou num bolero: melhor um gole.
Busquei refúgio nos meus livros, tantos deles
desertaram a esta hora da batalha,
mas aqueles que
ficaram diante de minha decadência anônima, animaram-me.
Abriu-os, livres
como um corpo que dança ou se joga ao infinito espaço,
o tempo,
instrumento de nossas alucinações, engana-nos na sua imensidão.
O gelo, o copo, a
mão trêmula, a ingestão da substância efêmera,
como efêmera é a
nossa existência posta aos cinco sentidos,
animal faminto, o
homem, a mulher, a libido, o som, o que é desvairado.
Abro um livro, um
poema de Quintana, por que o busco: ingrata solidão, uísque barato?
Traças, suores,
medos de uma nova ditadura, a falta de água e um novo pré 39,
sem a Santa Madre
URSS, sem os maquis, sem Apolônio de Carvalho.
Autor: Li T'ai Po (Chinês, 701/762)
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INEXISTIR
Há poemas
que se negam a nascer
por inteiro.
Mostram-se apenas um bracinho,
uma perninha,
um sorriso.
Apenas o necessário para que nos
apaixonemos.
Mas negam-se a nascer...
O motivo?
Sabe-se lá...
Travessuras, talvez.
Tenho vários desses quase rebentos.
Habitam as minhas gavetas,
dentre os meus livros,
em folhas amareladas
e pintadas com meus rabiscos,
à espera de que amadureçam.
Mas é inútil.
São travessos.
Apenas pequenos poemas travessos.
Autor: Omar Khayyam (Iraniano, 1048/1131)
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ESPELHOS, EM TRÊS REFLEXOS
REFLEXO
I
A primeira vez
que um espelho mágico
chamou a minha
atenção,
iam-se lá cinco
ou seis anos de vida.
Foi na casa de
minha tia Nete,
um espelho
grande,
quase do tamanho
de uma porta,
um gigante!
Fiquei fascinado.
Olhava-o por
vários minutos
esperando que meu
reflexo
errasse algum
movimento da coreografia
dos meus braços e
caretas.
Imaginava se
haveria um mundo dentro
da masmorra onde
se aprisionara o meu reflexo,
com certeza
influência de Alice.
Era bom o mundo,
eram bons os
sonhos,
criança,
não imaginava o terror da existência.
REFLEXO
II
Usava barbas na
adolescência,
para parecer mais
velho para as meninas.
Diante do espelho
aparava o excesso
de pelos
e desenhava
algumas linhas.
Apesar da
poliomielite,
via, na minha
imagem refletida,
um jovem forte e
bonito,
alegre e disposto
a lutar por um mundo melhor.
Vez ou outra,
quando alguma
lágrima nascia,
em virtude de
algum percalço,
ou das pequenas e
grandes derrotas
que se iam
acumulando
no meu lixão da
vida,
o espelho, de
alguma forma,
avisava-me, você
é apenas um,
existem bilhões
no planeta.
O fracasso na
música,
- contrabaixo,
violão, piano-
um poeta que
ninguém lia,
um casamento
aos dezoito anos,
a necessidade de
trabalhar para sustentar meu rebento,
o corre-corre da
faculdade,
as paixões fora
do casamento,
fizeram-me
esquecer da magia do espelho
que vivi aos cinco ou seis anos.
REFLEXO
III
Acabo de
completar cinquenta e um anos,
olho no espelho e
não me reconheço.
Os sonhos de
mudar o mundo através do socialismo
ainda persistem
mais fortes do que nunca,
mas sei que já
não será no meu tempo,
talvez no tempo
dos meus filhos
ou no tempo dos
meus netos.
No espelho do meu
banheiro,
vejo um homem com
nuvens brancas nos cabelos,
os sulcos no meu
rosto lembram as rotas abertas nas selvas,
a facão, à foice
e a martelo.
O sorriso meio
sem graça,
os dentes
amarelados,
- efeito dos
cigarros, do bom álcool e do invisível tempo -
indicam que a
vida passou,
e passa, enquanto
escrevo este poema,
no dia do meu
aniversário.
Junto aos amigos,
em companhia do
velho álcool,
remédio para as
dores reumáticas,
e para grandes
derrotas e perdas da vida,
lembramos,
emocionados:
a queda do muro
de Berlim,
a capitulação da
URSS,
o neoliberalismo,
que quase me
levou à loucura,
por minha
impotência,
por nada poder
fazer,
pela revolução
que não vinha.
A vitória de Lula
e a esperança de uma sociedade socialista,
a decepção.
O medo do
retrocesso via judiciário...
Evito conversar
com minha imagem refletida
naquele artefato
mágico da infância.
As lutas viraram
rotinas, e não são mais tão épicas,
- até conseguir
cortar as unhas dos pés,
já é uma grande
vitória.
Os remédios que
me salvam,
- também da
depressão -
são as amizades,
as conversas na
mesa de bar,
e continuar
sonhando, sempre,
um Sancho Pança,
orgulhoso,
cevado a
antidepressivos e ansiolíticos.
É recorrente
lembrar,
- e me faz rir
-
a minha
descoberta
aos cinco ou seis
anos,
na casa da minha
Tia Nete:
o espelho mágico.
E como na cantiga
de minha infância:
esperar, esperar,
esperar,
até a morte
chegar!
quem sabe, como
um presente,
no dia do meu
próximo aniversário.
Autor: Sebastião Alba (Moçambicano,
1940/2000)