Aos Mestres, com carinho!

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Drummond, Vinícius, Bandeira, Quintana e Mendes Campos

segunda-feira, 29 de agosto de 2022

“Os delírios verbais me terapeutam.” - por Manoel de Barros

 

Manoel de Barros


Certa vez, quando eu passava por um momento muito difícil , sonhei que seria operado do coração. 

Angustiado, eu pensava que não sobreviveria à operação. 

Não sei como fui parar ali, por quais caminhos andei ou fui levado. 

Sabia apenas que haveria uma operação e eu era o paciente a ser operado. 

De repente, adentra a sala de cirurgia o cirurgião. 

Ao vê-lo, meu medo desaparece, cheguei até a sorrir...

Pois o médico que me operaria era nada mais nada menos do que o poeta Fernando Pessoa! 

No princípio, achei estranho. 

Mas depois percebi que fazia sentido ser um poeta o cirurgião de um coração angustiado. 

Sem demora, o cirurgião-poeta abriu meu peito, mas não com bisturi:

não sangrou , nem houve dor. 

Ele enfiou uma das mãos, porém não foi suficiente. 

Somente as duas mãos do poeta conseguiram tirar meu coração do peito : 

"Ele está pesado como um paralelepípedo! Preciso extrair o que lhe pesa”, diagnosticou o cirurgião-poeta. 

“O que lhe pesa não é coisa física, o que lhe pesa é a mágoa com o passado, a decepção com o presente, o medo do futuro e a descrença nos homens”, disse-me ele enquanto extraía tudo isso. 

Quando olhei para a mão do poeta, meu coração estava minúsculo, parecendo uma semente salva de um fruto que perecia. 

Protestei: “poeta, com esse coração pequenino não vou sobreviver!” 

O cirurgião-poeta então respondeu, terminando sua arte, sua “clínica”: 

“Ele está assim pequeno porque deixei apenas o coração da criança.” 

Após ouvir isso acordei, e não apenas daquele sonho, já amanhecia. 

Queria registrar o sonho e me virei para pegar caneta e papel. 

Então, algo que estava sobre meu peito caiu ao meu lado na cama, era um livro que adormeci lendo: “O Eu Profundo e os outros Eus”, de Fernando Pessoa.