Aos Mestres, com carinho!

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Drummond, Vinícius, Bandeira, Quintana e Mendes Campos

domingo, 22 de dezembro de 2013

A tradição russa dos contos de fadas




A paixão dos russos pelos contos de fadas é muito antiga. Começou bem antes das pessoas saberem ler ou escrever. Naquela época, todos - ricos e pobres, crianças, adultos e velhos - se deliciavam contando histórias em grupos.

Os camponeses costumavam ouvir as histórias ao redor de fogueiras e, assim, de história em história, iam levando  suas vidas, trabalhando muito, plantando, colhendo e torcendo para uma vida melhor. Conversavam, bebiam vodca, faziam brincadeiras e criavam histórias. Mas o amor pelos contos de fadas entre os russos vai além dos camponeses, é geral e não está só nas histórias contadas ou escritas nos livros: está, também, no balé.

Na dança, tudo começou no final do século 19, por volta de 1890, quando os imperadores da época em que os tzares entravam em crise de poder e a distribuição de rendas no império estava ficando cada vez mais concentrada: os mais pobres chegavam a morrer de fome. Os mais ricos viviam numa opulência contrastantemente radical, o que levaria à vitória da Revolução Bolchevique pouco mais de vinte anos depois e mudaria o rumo das coisas.

Contrastando ainda mais com as misérias de grande parte da população, o tzar patrocinava na Rússia lindos e luxuosos espetáculos de balé, proporcionando a todos a possibilidade de sonhar e se distrair com cenários magníficos e um bailado de primeira qualidade. Era o já famoso "pão e circo" de luxo.

O tzar importou da França um mestre neste tipo de arte: Marius Petipa, hoje considerado um mestre franco russo e um dos maiores neste tipo de arte. Petipa deve ter se naturalizado russo (não consegui ainda checar a informação), já que adotava o patronímico "Ivanovitch" (seu pai se chamava Jean que, traduzindo para o russo vira Ivan, justificando o patronímico). Certo é que se casou com uma russa e, na época, a igreja exigia o batismo do noivo ou noiva estrangeiro que, na ocasião, adotava nome russo. Isto deve ter ocorrido com  Petipa, que  viveu na Rússia, em São Petersburgo, dos 29 anos até sua morte, em 1910, aos 92 anos.




Marius Ivanovitch Petipa era coreógrafo, professor e bailarino, considerado por muitos como o pai do balé clássico. Sob sua direção, o balé de São Petersburgo se tornou o melhor do mundo: foi de sua escola que saiu Anna Pavlova e Michel Fokine. Foi Petipa o responsável pela criação de um gênero de balé que é, até hoje, dançado nas compainhas russas: o famoso "Balé  dos Skazkás" ou, literalmente, Balé dos Contos de Fadas: neste tipo de balé, a bailarina é magrinha, branca, veste roupa com sainha rodada de tule. Parece, mesmo, uma fada. Realizando saltos, os bailarinos parecem voar, visitando países longínquos dos contos de fadas. Há muitos personagens no palco, formando, com seus corpos ágeis, verdadeiros desenhos geométricos no ar, tipo no vídeo abaixo:





O vídeo acima é da representação de "O Reino das Sombras", com música do austríaco Ludwig Minkus, austríaco também russificado, a exemplo de Marius.

Existe uma enorme variedade de Balé dos Skazkás, como, por exemplo,CinderelaA Bela Adormecida e o famoso "O Quebra Nozes", com música de Tchaykovsky e estreia em 1892, no Teatro Mariinsky, de São Petersburgo, baseado numa versão de Alexandre Dumas de um conto infantil do mesmo nome, escrito por E. T. A. Hoffmann.Não vou transcrever no espaço deste post o enredo de "O quebra Nozes", mas direciono o leitor interessado para ler sobre ele aqui ou para assisti-lo a seguir:




Os contos de fadas eram tão importantes na Rússia imperial, que influenciava não só o balé, mas a vida do país em sua totalidade. Contos repletos de delicadezas mas existem, também, contos de fadas violentos, que revelam a vida com suas lutas e conquistas. Exemplo deste tipo de contos é a história de"Alyosha Popovitch", muito conhecida na Rússia e resumida abaixo:


Alyosha Popovitch era um menino, filho do pastor de uma cidade do interior, que nasceu muito robusto. Tão robusto que ao brincar com os meninos de seu bairro, acabava, sem querer, arrancando seus braços e pernas, só de encostar neles! 
Um dia, o menino resolveu virar soldado do príncipe Vladímir, filho do tzar..
- "Pode ir, meu filho -, disse o pastor; - Leve o fiel servo Maryshko com você e lembre-se que encontrará gigantes terríveis com quem lutar".

Eis que, ao chegar ao palácio do príncipe, Alyosha avistou o gigante, filho do dragão. Ele era tão terrível e guloso que, durante o jantar, enfiou duas baguetes enormes de pão de uma só vez na boca e, no meio, colocou um cisne inteiro.

Alyosha sentiu o perigo...

Pois chegou o tempo em que os dois se encontraram no campo da batalha. Só se ouviu um estrondo...

Maryshko sentiu medo. Ouviu o trotar de um cavalo e espreitando pela fresta da janela viu apenas a cabeça do gigante. O servo acreditou que o gigante era, então, o vencedor. Mas, qual não foi sua surpresa, quando viu Alyosha, este sim, o verdadeiro vitorioso, cavalgando e segurando a cabeça do gigante que ele havia matado. E decapitado."
 Eram tantas as variedades de contos - contos de paz, contos de guerra, contos de todos os tipos - que foi preciso que um estudioso russo, Vladímir Propp, o da foto abaixo, um peterburguense, catalogasse tudo, todos os tipos de contos existentes.



Propp  reuniu cerca de 450 contos e analisou os componentes básicos de seus  enredos, visando identificar os seus elementos narrativos mais simples e indivisíveis e conseguiu demonstrar que
"os contos populares se constituem sempre em torno de um núcleo simples. O herói sofre um dano ou tem uma carência, e as tentativas de recuperação do dano ou de superação da carência constituem o corpo da narrativa".
Com base no exposto acima, encontrou 31 funções dos contos que podem ser agrupadas em 7 esferas de ação, agrupadas por personagens:
  1.  O agressor (o que faz mal)
  2.  O doador - o que dá o objeto mágico ao herói
  3.  O auxiliar - que ajuda o herói no seu percurso
  4. A Princesa e o Pai (não tem de ser obrigatoriamente o Rei)
  5.  O Mandador - aquele que manda
  6.  O Herói
  7.  O falso herói
 As 31 funções encontradas pelo estudioso explicam a repetição de certas ideias que são comuns em histórias diferentes, de países diferentes, ou seja: histórias contadas na Rússia, na França ou no Brasil podem ser parecidas, mesmo se contadas de forma diferente. Veja só um exemplo a seguir, que faz lembrar a história da Cinderela, mas é uma história do folclore russo: nele estão presentes as funções acima da princesa e do pai, do herói, do agressor, do doador, da mesma forma que em Cinderela, só que contadas dentro da realidade russa da época: a menina não sonhava em ir ao baile, mas à missa, onde estava o filho do rei (não se pode esquecer a religiosidade do povo russo, principalmente no período anterior à Revolução de Outubro); o trabalho que a garota teria que realizar era moer o trigo - elemento essencial na culinária russa  - e fazer a farinha, ao contrário da Cinderela que esfregava o chão. A Cinderela, princesa francesa,era rodeada de invensões franceses, tipo o saptinho de cristal, o baile, a fada. O camponês russo, cercado de detalhes de seu mundo: peixinho, missa, trigo.

Esta história é muito antiga e era contada por camponeses que desconheciam a obra de Perrault, descartando-se , assim, a opção de plágio.


O Sapato de Ouro


Duas irmãs ganham, cada qual, um peixinho de seu pai. A mais velha, prática e ajuizada, frita e come o seu, já que estava com fome. Mas a segunda, Nikita, muito criativa, resolve perguntar a seu próprio peixinho o que ele quer que ela faça com ele. 
Qual não foi sua surpresa quando o peixe  respondeu: "Não me coma, por favor. Me jogue no rio e você não se arrependerá. Eu irei sempre te ajudar".
Nikita assim o fez, mas sua mãe achou aquilo um absurdo e começou a maltratar a pequena. Levava a mais velha para a missa, toda bem vestida e deixava a mais nova trabalhando. Ordenava:
- Moa o trigo, faça farinha.

A caçula, então, triste, resolveu pedir ajuda ao peixinho.
- "Eu queria tanto ir a missa..."

- "Pois não se preocupe: ponha uma bela roupa e vá. Quando você chegar o trigo estará moído."
 E Nikita foi, tão bela e bem vestida que nem a mãe, nem a irmã a reconheceram. O padre nem conseguiu ler o sermão e ficou encantado com a figura da menina, olhando para ela o tempo todo. O filho do rei, que estava lá também, não desgrudava o olhar.


Assim, a história se repetiu por mais três missas e, na terceira, o príncipe resolveu descobrir quem era, afinal, aquela linda garota, colocando em prática o seguinte plano:jogou cola no chão, próximo ao sapatinho dourado da menina. Quando ela foi embora, um dos sapatos ficou grudado. O príncipe guardou-o e anunciou que se casaria com a menina em quem o calçado servisse. Como era de se esperar, depois de prová-lo em muitas donzelas do reino, o sapato serviu como uma luva no pezinho de Nikita que, então, tornou-se princesa.


Obs:
 para o pessoal que estuda a língua russa, fica, aqui, o endereço do site com este conto no seu idioma de origem.

Fontes de consulta:

- Livro "Balé dos Skazkás", de Catia Canton (Difusão Cultural do Livro)
http://slovari.yandex.ru
http://video.yandex.ru/
http://images.yandex.ru/

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