Aos Mestres, com carinho!

Aos Mestres, com carinho!
Drummond, Vinícius, Bandeira, Quintana e Mendes Campos

segunda-feira, 1 de agosto de 2016

Capela Dourada, um conto de Roque Braz


Quando nada mais resistir que valha
A pena de viver e a dor de amar
E, quando nada mais interessar
(Nem o torpor do sono que se espalha),
Quando, pelo desuso da navalha,
A barba livremente caminhar
E até Deus em silêncio se afastar,
Deixando-te sozinho na batalha
A arquitetar na sombra a despedida
Do mundo que te foi contraditório,
Lembra que, afinal, te resta a vida
 Com tudo o que é insolvente e provisório –
E que ainda tens uma saída:
Entrar no acaso e amar o transitório.
(Carlos Penna Filho1: A Solidão e sua Porta)


            Estava entre ligar o som do carro ou apenas ouvir o barulho da rua, o ruído dos motores. Indo pro trabalho, “às tantas da manhã”, o vidro aberto por aproveitar o benefício do sol àquela hora, os olhos imprecisos resguardados pelos óculos escuros. Uma sombra de árvore, um muro pintado de hera, o sinal verde fechando, os carros se enfileirando lentamente.

            Não era dia de jogo; nenhuma bandeira do Santa Cruz, do Náutico ou do Sport pendia do teto de algum automóvel na manhã quase sem brisa. Nada prenunciava uma alegria para o momento nem para logo mais. Sinal fechado, carros parados, carros parando, longa fila se formava. Era de crer na existência de algo além do sinal fechado a impedir o trânsito. Cedinho, chovera bastante. Agora fazia pouco sol.

            O olhar impreciso flutuava sobre todas as coisas, até que atracou num perfil familiar no veículo ao lado. Ancorou ali e ficou a perscrutar. De repente, do fundo do mar de esquecimento, veio à tona da luz do lampejo da memória toda a história que o delineamento daquele perfil fazia contar outra vez. Ante a visão inesperada, o susto; ante o susto, o retraimento, como a tentar esconder a própria imagem, embora não soubesse exatamente o porquê daquela reação. Talvez o receio de ser flagrado ali, olhando para ela sem lhe dirigir a palavra depois de tanto tempo... Era ela, sim. Aquele perfil inconfundível, tão conhecido e amado outrora.

            O perfil foi tomando feição nova e, daquelas linhas, outra imagem surgiu e tentou suplantar aquela visível, real, tão viva ali ao meu lado. Uma sensação alucinante percorria meus nervos e as imagens se mesclavam e separavam e confundiam. O embate foi curto e venceu o rosto novo que não estava em perfil no carro ao lado do meu, mas, tão somente na minha cabeça.

            Ficou diante dos meus olhos, sorrindo com toda a graça. Era ela (e não a do carro ao lado) que fazia passeios pelo Cabo de Santo Agostinho. Contou que muitas vezes tomava um ônibus e ia para Suape ou outra praia distante. Ficava tardes inteiras contemplando a beleza do lugar, olhando o mar até o sol sumir... Ou ficava rodando pelas várias pontes da cidade... Telúrica; eu, nefelibata. Ficou de me levar num desses passeios. Um comprometimento e um sonho tão grandes que nunca aconteceu. Falava essas coisas com o sorriso mais natural do mundo. A doçura da voz com sotaque de carioca que era e jovialidade de moça que mostra os dentes perfeitos do magnífico sorriso e convida para um passeio que, antes de ser sensual, é para fazer turismo numa igreja do centro da cidade. Capela dourada do convento de São Francisco. No centro do Recife, na Rua do Imperador.

            Normalmente nos encontrávamos à noite, no campus universitário...

            – Parabéns pelo nascimento do seu filho! Alguém disse e me abraçou com grande entusiasmo.

            – Seu filho nasceu hoje?!

            – Você viu os parabéns; é o primeiro.

            – Ah, que lindo! Disse e me beijou a boca com sofreguidão de parabéns, carinho e sensualidade.

            Fiquei desconcertado. Não esperava o beijo; principalmente como afago pelo nascimento do meu filho. Mas gostei muito. Meu sangue recifense empederniu-se e derreteu no mesmo instante e lá se foi desvairado em busca de misturar-se ao daquela criatura tão bela, com aqueles longos cabelos louros escorrendo até à cintura. Cintura que, no arrebatamento daquele instante, tornei a abraçar e puxar ao meu encontro para novo beijo. Descobrimos ali que esse era o nosso desejo desde o dia em que nos conhecemos.

            Miguel, um tipo exótico metido a teatrólogo e cineasta (no melhor sentido possível), que, apesar de muito jovem, usava uma espécie de barbicha e bigodes que teimava em dar voltinhas nas pontas, foi quem nos apresentou. Eram três: ele, ela e uma outra amiga, também loura. Todos muito sorridentes. Percebemos muitas afinidades entre nós. Faziam teatro, além de estudar.

            – E você; faz o quê?

            – Sexo. Muito sexo, respondi.

            – Estou falando de coisa produtiva, disse com uma entonação linda e sem perder a pose.

            – Mais produtivo do que sexo, impossível! Tome como exemplo os animais em extinção!

            – No mundo das artes, então, alguma coisa? Miguel disse que você é poeta, entre outras qualidades.

            – Outros defeitos, você quer dizer, minha querida, outros defeitos...

            – Você, que é poeta, acha que ser poeta é defeito?

            – Quando dizem que sou poeta, fico com medo da maldição.

            – Maldição?!

            – Vou contar uma história que ouvi de uma antiga namorada: o poeta chega para a namorada e diz “Você já disse aos seus pais que sou poeta?”, “Não; disse só que você é alcoólatra e desempregado; temos que ir devagar com meus pais”.

            Ela me abraçou em crise histérica de riso. Era linda. Sorria como se fizesse carinho e olhava como quem beija. Angélico seria insuficiente para qualificar seu rosto.

            Passamos a nos ver várias vezes por semana. Vinha com Miguel e a amiga ou apenas com Miguel e me arrancava da sala de aula com a simples aparição. A noite virava, então, um barzinho e muita conversa com cerveja e ditos espirituosos. “A frase que tem o mesmo sentido lendo do começo para o fim e do fim pro começo é um anagrama?”. Respondi: “Não, Miguel, isso que você falou se chama palíndromo. Uma na grama é quando a gente não tem uma cama por perto, aí a gente dá uma na grama mesmo”. Ela se derramava em riso até as lágrimas, caindo sobre meu ombro.

            Certa vez me ligou cedinho e combinamos um encontro à tarde, no campus. Quando nos encontramos, pedi para passarmos num churrasco na mesma Cidade Universitária, numa casa em que se encontrava uma amiga. Lá, a amiga me recebeu com um demorado beijo na boca. Ela não gostou; via-se no seu rosto. Sorriu secamente quando a amiga, falando comigo e olhando para ela, elogiou sua beleza. Estava deslumbrante. Vestia saia longa até o meio da perna, tecido fino que caía muito bem sobre o corpo e realçava os contornos da cintura e dos quadris. Uma blusa curta, justa, expondo o umbigo perfeito e os suaves músculos divisórios da barriga aveludada pela penugem dourada. Percebi seu desagrado e, abraçando-a, beijei-a com extremo carinho. Saímos. Não fez qualquer comentário.

            Alguns dias depois, por telefone, disse que queria me ver; que tinha algo a me dizer. Combinamos de nos encontrar à tardinha, no campus. Fui ao local combinado, ela não estava. Deixou recado com um nosso colega sobre onde encontrá-la. Quando nos encontramos, fomos, a seu pedido, ao Centro de Artes. A noite caía e não falou o que tinha a dizer.

            Voltávamos do Centro de Artes na direção da Casa do Estudante quando principiou uma chuva fina, muito fina, e nós, de braços dados, caminhávamos lentamente como se a chuva fosse composta de minúsculos raios de sol. A cor da noite se derramara em todos os cantos da paisagem. Olhei ao redor; ninguém à vista. Prendi ainda mais seu braço contra meu corpo e me dirigi, pisando na grama, a uma das árvores que margeiam a calçada e a pista.

            Recostada na árvore, entregou-se com avidez e carinho ao meu apelo sensual. Tentei puxá-la para o chão, mas me afastou suavemente e, olhando nos meus olhos, deitou-se devagar na grama, estendendo completamente a perna direita e deixando a esquerda arqueada, numa pose linda naquele ambiente um tanto escuro. Seus cabelos ainda não estavam completamente molhados e se entreabriram, fazendo emergir a testa redonda, pequena, compondo o arremate para aquele rosto perfeito.

            Em sintonia com sua suavidade, levantando seu corpo aqui e ali, consegui estender a camisa sob o seu dorso. Puxou, então, o vestido até a altura dos seios e me sorriu o mesmo sorriso de sempre: aquela imagem que mais parecia um indulto à felicidade. Desnudei-lhe por completo a parte de baixo e contemplei, naquela pouca claridade, sua forma belíssima de corpo feminino. Entrei, por fim, com todo o desvelo, na concretude daquele sonho.

            Seu corpo estremecia de quando em quando e eu podia sentir sua pele arrepiar-se, enquanto seus pequenos vagidos de gata no cio me arrebatavam toda a lucidez. Não dá para saber quanto tempo estivemos ligados naquele movimento que torna macho e fêmea inerentes. Ela era, ali, bem mais do que eu imaginara em todas as vezes que a lembrança me trazia sua imagem e me fazia mergulhar na fantástica ilusão de possuí-la.

            Mordeu com mais força meu lábio inferior, enquanto se agitava nos estertores máximos do prazer. Do canto esquerdo do seu olho esquerdo, uma lágrima rolou e se perdeu no cabelo úmido. Olhando sempre nos meus olhos, prendeu minha língua nos seus dentes e pôs as mãos nas minhas nádegas de forma a controlar os quadris. Começou, então, a comandar meus movimentos. Sua língua brincava com a minha, que permanecia presa entre os seus dentes. Suas mãos me faziam recuar e avançar de acordo com sua vontade. Suas unhas machucavam de forma agradável minhas nádegas.

            Fez um vaivém cada vez mais acelerado e me abraçou fortemente quando sentiu que meu corpo finalmente tombava sobre o seu, com a vitalidade derretida na seiva que ela recebia com semblante de extremo prazer e carinho. Estivemos quietos durante algum tempo, recuperando a respiração. Ela me sustinha abraçado ao seu corpo.

            Foi muito divertida a recomposição das roupas. O vestido era marrom, portanto não apresentava senão uma mancha na altura do tórax. A Casa do Estudante parecia indiferente, com suas janelas abertas e iluminadas. Afora o ruído dos carros ao longe sobre o viaduto, tudo era silêncio.

            Estávamos úmidos da chuvinha que não cessava. Ela parecia encarar com naturalidade o fato de estar molhada e até um pouco amarrotada e suja. Caminhamos abraçados até a parada de ônibus. Tomou um ônibus e fiquei aguardando o meu. Não me lembrei de perguntar o que tinha para me dizer, também nada falou.

            Desde que se fora no ônibus, não mais nos vimos. Não tinha seu telefone, não sabia onde morava, era sempre ela quem ligava ou ia ao meu curso. Dias depois encontrei Miguel e perguntei por ela.

            – Ela não falou, não?

            – Não, o quê?

            – Ela foi pro Rio de Janeiro.

            – Como “pro Rio”? Foi embora?

            – Não sei. A gente andava muito junto por conta da faculdade e do teatro... Vida privada é outra história.

            Fiquei desolado. O que ela quis me dizer? Que ia pro Rio?

            – Ela não lhe disse nada mesmo, Miguel?

            – Nada. Calma, meu filho, ela é assim mesmo, de lua. Daqui a pouco aparece de novo... Agora, me diga uma coisa: você está apaixonado?

            – Vá pra lá com seu teatro, Miguel!

            – É fácil se apaixonar por uma criatura linda e doce daquelas, né-não? Disse isto sorrindo por trás dos óculos de moldura preta e lentes grossas, fazendo uma cômica espiral no canto direito do bigode.

            Durante algum tempo assediei Miguel em busca de notícias. Nada. Depois de alguns meses já quase não o via. Uns dois anos depois, ele me abordou e me deu o telefone dela. Liguei naquela mesma tarde e uma voz que se identificou como “tia” disse que ela não estava. Pediu para ligar à noite. À noite foi ela quem atendeu. A mesma voz doce, subtraído o antigo entusiasmo. Supus que era o fato de não poder falar claramente comigo. Combinamos encontro para dali a dois dias.

            Cheguei mais cedo ao local combinado. Estava um pouco ansioso. Ela apareceu logo depois e não me beijou na boca como se tornara praxe depois do nosso primeiro beijo. Recebi um beijo carinhoso na testa.

            Sentada pediu um suco. Falamos pouco e parecia que evitávamos falar do nosso último encontro. Após o suco, chamou para sair, dizendo que de onde estávamos até a Rua do Imperador era perto; dava para ir a pé.

            – Vamos à Rua do Imperador? Que vamos fazer lá?

            – Você já visitou a Capela Dourada? abriu o lindo sorriso ao perguntar.
            – Capela Dourada? Nunca ouvi nem falar.

            – É um lugar lindo! Lembra que você apelidou meus passeios de “passeios de fadário”? Vamos fazer um passeio de fadário...

            – Não quero bancar o erudito, mas a palavra fadário é dúbia e até mesmo capciosa. E foi exatamente por isto que a empreguei acerca dos seus passeios...

            – É claro que percebi; achei, inclusive, que você tinha acertado em cheio no nome escolhido. E é “exatamente por isto” que vamos à Capela Dourada.

            Caminhamos sorridentes entre gracejos e pequenos encontrões dos ombros. Tentei o mais que pude arrancar-lhe aquele sorriso de entrega, de convite, que a tornava deslumbrante. Continuava muito bonita e o seu sorriso mantinha o traço original que me fez enlouquecer desde o primeiro dia.

            Chegamos. A Capela Dourada da Venerável Ordem Terceira de São Francisco, que também recebe o nome de Capela dos Noviços, fica na Rua Imperador Pedro II, no Bairro de Santo Antônio. Foi construída em 1697; é “uma das mais expressivas representantes da arte barroca nas igrejas brasileiras” e o ouro é predominante em sua pintura. Muitos quilos de ouro se derramam por todas as paredes. Fiquei extasiado. Antes olhamos todas as peças do Museu Franciscano de Arte Sacra.

            O convento era de um silêncio ensurdecedor. Tudo aquilo incrustado ali, na Rua do Imperador, junto ao Palácio da Justiça, com vários mendigos pela calçada, defronte à OAB, junto dos cartórios, mas um oásis de paz, de serenidade, onde parece impossível computar o tempo.

            Apesar dos braços dados, não nos tocávamos. E lá ia ela a me explicar aos cochichos o que sabia e suas impressões acerca daquele paraíso perdido. Tudo na voz mais graciosa do mundo.

            Com a mesma graça com que me arrastou até ali me conduziu para fora e se despediu. Vendo seu sorriso de despedida, tive certeza de que não mais a veria, a não ser por mero acaso. Na vã tentativa de retê-la mais uns instantes, perguntei o que tinha para me dizer naquele dia do Centro de Artes. Respondeu que agora era um segredo e que segredo só é segredo quando é do conhecimento de apenas uma pessoa; mais de uma é boato.

            – Viu que eu também sei fazer humor? Não tão bom quanto o seu, mas, eficaz. Aliás, você sabe fazer tudo bem, inclusive amor.

            – O que você quis me dizer me trazendo aqui, à Capela Dourada? desconversei.

            – Você é perspicaz. Você decifrará. Qualquer dia a gente se vê por aí, tá?

            Reagi com a fragilidade grosseira dos homens, que acreditam poder resolver coisas com mulher com beijo ou uma trepada: pedi um beijo. Ela sorriu, veio ao meu encontro, beijou meu rosto, cheirou longamente o meu pescoço e se afastou acenando. Dobrou a esquina do Palácio da Justiça. Não fui atrás.

            Enlouqueci. Passei dias tentando decifrar a mensagem da Capela Dourada. Pedia aos amigos para visitá-la na tentativa de traduzir o que vi, mas não entendi. Depois, pedia aos amigos para não tentar descobrir, pois tinha medo do que me fosse revelado. Também o que ela ia me dizer no dia do Centro de Artes me aturdia.

            Alguns anos depois, olhando as coisas que lhe escrevi, parecia que ela nunca existiu; que imaginei tudo aquilo; que se desvaneceu na fumaça de todos os cigarros que lhe dediquei... “Fumée, rien que fumée2”.

            O sinal abriu e aquela que estava ali, no carro ao lado do meu, cujo perfil me trouxe tanta surpresa, acelerou. Tentei acompanhar, mas, quando chegou à esquina em que ficava o sinal, dobrou à esquerda. Fui em frente e nos meus olhos começaram a se projetar novamente todas as lembranças do que também vivemos juntos. Todavia a nova história foi cortada por um pensamento que me ocorreu naquele instante: o homem conta o tempo para não ver a si mesmo; para não ver a própria condição de transitoriedade e assim poder lamentar o tempo que passou. Mas o tempo, ah, o tempo, este fica sempre no mesmo lugar (feito um pescador à beira do rio), espreitando, na celeridade das nossas vidas, a inocência de acreditarmos que ele não para, apesar de aparentemente inalterado (feito um rio), enquanto nós é que verdadeiramente, inevitavelmente, vamos passando.

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1 Poeta pernambucano (1929-1960);
Fumaça, não mais que fumaça.