Quando nada mais resistir que valha
A pena de viver e a dor de amar
E, quando nada mais interessar
(Nem o torpor do sono que se espalha),
Quando, pelo desuso da navalha,
A barba livremente caminhar
E até Deus em silêncio se afastar,
Deixando-te sozinho na batalha
A arquitetar na sombra a despedida
Do mundo que te foi contraditório,
Lembra que, afinal, te resta a vida
– Com tudo o que é insolvente e
provisório –
E que ainda tens uma saída:
Entrar no acaso e amar o transitório.
(Carlos Penna Filho1: A Solidão e sua Porta)
Estava entre ligar o
som do carro ou apenas ouvir o barulho da rua, o ruído dos motores. Indo pro
trabalho, “às tantas da manhã”, o vidro aberto por aproveitar o benefício do
sol àquela hora, os olhos imprecisos resguardados pelos óculos escuros. Uma sombra
de árvore, um muro pintado de hera, o sinal verde fechando, os carros se
enfileirando lentamente.
Não era dia de jogo;
nenhuma bandeira do Santa Cruz, do Náutico ou do Sport pendia do teto de algum
automóvel na manhã quase sem brisa. Nada prenunciava uma alegria para o momento
nem para logo mais. Sinal fechado, carros parados, carros parando, longa fila
se formava. Era de crer na existência de algo além do sinal fechado a impedir o
trânsito. Cedinho, chovera bastante. Agora fazia pouco sol.
O olhar impreciso
flutuava sobre todas as coisas, até que atracou num perfil familiar no veículo
ao lado. Ancorou ali e ficou a perscrutar. De repente, do fundo do mar de
esquecimento, veio à tona da luz do lampejo da memória toda a história que o
delineamento daquele perfil fazia contar outra vez. Ante a visão inesperada, o
susto; ante o susto, o retraimento, como a tentar esconder a própria imagem,
embora não soubesse exatamente o porquê daquela reação. Talvez o receio de ser
flagrado ali, olhando para ela sem lhe dirigir a palavra depois de tanto
tempo... Era ela, sim. Aquele perfil inconfundível, tão conhecido e amado
outrora.
O perfil foi tomando
feição nova e, daquelas linhas, outra imagem surgiu e tentou suplantar aquela
visível, real, tão viva ali ao meu lado. Uma sensação alucinante percorria meus
nervos e as imagens se mesclavam e separavam e confundiam. O embate foi curto e
venceu o rosto novo que não estava em perfil no carro ao lado do meu, mas, tão
somente na minha cabeça.
Ficou diante dos meus
olhos, sorrindo com toda a graça. Era ela (e não a do carro ao lado) que fazia
passeios pelo Cabo de Santo Agostinho. Contou que muitas vezes tomava um ônibus
e ia para Suape ou outra praia distante. Ficava tardes inteiras contemplando a
beleza do lugar, olhando o mar até o sol sumir... Ou ficava rodando pelas
várias pontes da cidade... Telúrica; eu, nefelibata. Ficou de me levar num
desses passeios. Um comprometimento e um sonho tão grandes que nunca aconteceu.
Falava essas coisas com o sorriso mais natural do mundo. A doçura da voz com
sotaque de carioca que era e jovialidade de moça que mostra os dentes perfeitos
do magnífico sorriso e convida para um passeio que, antes de ser sensual, é
para fazer turismo numa igreja do centro da cidade. Capela dourada do convento
de São Francisco. No centro do Recife, na Rua do Imperador.
Normalmente nos
encontrávamos à noite, no campus universitário...
– Parabéns pelo
nascimento do seu filho! Alguém disse e me abraçou com grande entusiasmo.
– Seu filho nasceu
hoje?!
– Você viu os
parabéns; é o primeiro.
– Ah, que lindo! Disse
e me beijou a boca com sofreguidão de parabéns, carinho e sensualidade.
Fiquei desconcertado.
Não esperava o beijo; principalmente como afago pelo nascimento do meu filho.
Mas gostei muito. Meu sangue recifense empederniu-se e derreteu no mesmo
instante e lá se foi desvairado em busca de misturar-se ao daquela criatura tão
bela, com aqueles longos cabelos louros escorrendo até à cintura. Cintura que,
no arrebatamento daquele instante, tornei a abraçar e puxar ao meu encontro
para novo beijo. Descobrimos ali que esse era o nosso desejo desde o dia em que
nos conhecemos.
Miguel, um tipo exótico
metido a teatrólogo e cineasta (no melhor sentido possível), que, apesar de
muito jovem, usava uma espécie de barbicha e bigodes que teimava em dar
voltinhas nas pontas, foi quem nos apresentou. Eram três: ele, ela e uma outra
amiga, também loura. Todos muito sorridentes. Percebemos muitas afinidades
entre nós. Faziam teatro, além de estudar.
– E você; faz o quê?
– Sexo. Muito sexo,
respondi.
– Estou falando de
coisa produtiva, disse com uma entonação linda e sem perder a pose.
– Mais produtivo do
que sexo, impossível! Tome como exemplo os animais em extinção!
– No mundo das artes,
então, alguma coisa? Miguel disse que você é poeta, entre outras qualidades.
– Outros defeitos,
você quer dizer, minha querida, outros defeitos...
– Você, que é poeta,
acha que ser poeta é defeito?
– Quando dizem que sou
poeta, fico com medo da maldição.
– Maldição?!
– Vou contar uma
história que ouvi de uma antiga namorada: o poeta chega para a namorada e diz
“Você já disse aos seus pais que sou poeta?”, “Não; disse só que você é
alcoólatra e desempregado; temos que ir devagar com meus pais”.
Ela me abraçou em
crise histérica de riso. Era linda. Sorria como se fizesse carinho e olhava
como quem beija. Angélico seria insuficiente para qualificar seu rosto.
Passamos a nos ver
várias vezes por semana. Vinha com Miguel e a amiga ou apenas com Miguel e me
arrancava da sala de aula com a simples aparição. A noite virava, então, um
barzinho e muita conversa com cerveja e ditos espirituosos. “A frase que tem o
mesmo sentido lendo do começo para o fim e do fim pro começo é um anagrama?”.
Respondi: “Não, Miguel, isso que você falou se chama palíndromo. Uma na grama é
quando a gente não tem uma cama por perto, aí a gente dá uma na grama mesmo”.
Ela se derramava em riso até as lágrimas, caindo sobre meu ombro.
Certa vez me ligou
cedinho e combinamos um encontro à tarde, no campus. Quando nos encontramos,
pedi para passarmos num churrasco na mesma Cidade Universitária, numa casa em
que se encontrava uma amiga. Lá, a amiga me recebeu com um demorado beijo na
boca. Ela não gostou; via-se no seu rosto. Sorriu secamente quando a amiga,
falando comigo e olhando para ela, elogiou sua beleza. Estava deslumbrante.
Vestia saia longa até o meio da perna, tecido fino que caía muito bem sobre o
corpo e realçava os contornos da cintura e dos quadris. Uma blusa curta, justa,
expondo o umbigo perfeito e os suaves músculos divisórios da barriga aveludada
pela penugem dourada. Percebi seu desagrado e, abraçando-a, beijei-a com
extremo carinho. Saímos. Não fez qualquer comentário.
Alguns dias depois,
por telefone, disse que queria me ver; que tinha algo a me dizer. Combinamos de
nos encontrar à tardinha, no campus. Fui ao local combinado, ela não estava.
Deixou recado com um nosso colega sobre onde encontrá-la. Quando nos
encontramos, fomos, a seu pedido, ao Centro de Artes. A noite caía e não falou
o que tinha a dizer.
Voltávamos do Centro
de Artes na direção da Casa do Estudante quando principiou uma chuva fina,
muito fina, e nós, de braços dados, caminhávamos lentamente como se a chuva
fosse composta de minúsculos raios de sol. A cor da noite se derramara em todos
os cantos da paisagem. Olhei ao redor; ninguém à vista. Prendi ainda mais seu
braço contra meu corpo e me dirigi, pisando na grama, a uma das árvores que
margeiam a calçada e a pista.
Recostada na árvore,
entregou-se com avidez e carinho ao meu apelo sensual. Tentei puxá-la para o
chão, mas me afastou suavemente e, olhando nos meus olhos, deitou-se devagar na
grama, estendendo completamente a perna direita e deixando a esquerda arqueada,
numa pose linda naquele ambiente um tanto escuro. Seus cabelos ainda não
estavam completamente molhados e se entreabriram, fazendo emergir a testa
redonda, pequena, compondo o arremate para aquele rosto perfeito.
Em sintonia com sua
suavidade, levantando seu corpo aqui e ali, consegui estender a camisa sob o
seu dorso. Puxou, então, o vestido até a altura dos seios e me sorriu o mesmo
sorriso de sempre: aquela imagem que mais parecia um indulto à felicidade.
Desnudei-lhe por completo a parte de baixo e contemplei, naquela pouca
claridade, sua forma belíssima de corpo feminino. Entrei, por fim, com todo o
desvelo, na concretude daquele sonho.
Seu corpo estremecia
de quando em quando e eu podia sentir sua pele arrepiar-se, enquanto seus
pequenos vagidos de gata no cio me arrebatavam toda a lucidez. Não dá para
saber quanto tempo estivemos ligados naquele movimento que torna macho e fêmea
inerentes. Ela era, ali, bem mais do que eu imaginara em todas as vezes que a
lembrança me trazia sua imagem e me fazia mergulhar na fantástica ilusão de
possuí-la.
Mordeu com mais força
meu lábio inferior, enquanto se agitava nos estertores máximos do prazer. Do
canto esquerdo do seu olho esquerdo, uma lágrima rolou e se perdeu no cabelo
úmido. Olhando sempre nos meus olhos, prendeu minha língua nos seus dentes e
pôs as mãos nas minhas nádegas de forma a controlar os quadris. Começou, então,
a comandar meus movimentos. Sua língua brincava com a minha, que permanecia
presa entre os seus dentes. Suas mãos me faziam recuar e avançar de acordo com
sua vontade. Suas unhas machucavam de forma agradável minhas nádegas.
Fez um vaivém cada vez
mais acelerado e me abraçou fortemente quando sentiu que meu corpo finalmente
tombava sobre o seu, com a vitalidade derretida na seiva que ela recebia com
semblante de extremo prazer e carinho. Estivemos quietos durante algum tempo,
recuperando a respiração. Ela me sustinha abraçado ao seu corpo.
Foi muito divertida a
recomposição das roupas. O vestido era marrom, portanto não apresentava senão
uma mancha na altura do tórax. A Casa do Estudante parecia indiferente, com
suas janelas abertas e iluminadas. Afora o ruído dos carros ao longe sobre o
viaduto, tudo era silêncio.
Estávamos úmidos da
chuvinha que não cessava. Ela parecia encarar com naturalidade o fato de estar
molhada e até um pouco amarrotada e suja. Caminhamos abraçados até a parada de
ônibus. Tomou um ônibus e fiquei aguardando o meu. Não me lembrei de perguntar
o que tinha para me dizer, também nada falou.
Desde que se fora no
ônibus, não mais nos vimos. Não tinha seu telefone, não sabia onde morava, era
sempre ela quem ligava ou ia ao meu curso. Dias depois encontrei Miguel e
perguntei por ela.
– Ela não falou, não?
– Não, o quê?
– Ela foi pro Rio de
Janeiro.
– Como “pro Rio”? Foi
embora?
– Não sei. A gente
andava muito junto por conta da faculdade e do teatro... Vida privada é outra
história.
Fiquei desolado. O que
ela quis me dizer? Que ia pro Rio?
– Ela não lhe disse
nada mesmo, Miguel?
– Nada. Calma, meu
filho, ela é assim mesmo, de lua. Daqui a pouco aparece de novo... Agora, me
diga uma coisa: você está apaixonado?
– Vá pra lá com seu
teatro, Miguel!
– É fácil se apaixonar
por uma criatura linda e doce daquelas, né-não? Disse isto sorrindo por trás
dos óculos de moldura preta e lentes grossas, fazendo uma cômica espiral no
canto direito do bigode.
Durante algum tempo
assediei Miguel em busca de notícias. Nada. Depois de alguns meses já quase não
o via. Uns dois anos depois, ele me abordou e me deu o telefone dela. Liguei
naquela mesma tarde e uma voz que se identificou como “tia” disse que ela não
estava. Pediu para ligar à noite. À noite foi ela quem atendeu. A mesma voz
doce, subtraído o antigo entusiasmo. Supus que era o fato de não poder falar
claramente comigo. Combinamos encontro para dali a dois dias.
Cheguei mais cedo ao
local combinado. Estava um pouco ansioso. Ela apareceu logo depois e não me
beijou na boca como se tornara praxe depois do nosso primeiro beijo. Recebi um
beijo carinhoso na testa.
Sentada pediu um suco.
Falamos pouco e parecia que evitávamos falar do nosso último encontro. Após o
suco, chamou para sair, dizendo que de onde estávamos até a Rua do Imperador
era perto; dava para ir a pé.
– Vamos à Rua do
Imperador? Que vamos fazer lá?
– Você já visitou a
Capela Dourada? abriu o lindo sorriso ao perguntar.
– Capela Dourada?
Nunca ouvi nem falar.
– É um lugar lindo!
Lembra que você apelidou meus passeios de “passeios de fadário”? Vamos fazer um
passeio de fadário...
– Não quero bancar o
erudito, mas a palavra fadário é dúbia e até mesmo capciosa. E foi exatamente
por isto que a empreguei acerca dos seus passeios...
– É claro que percebi;
achei, inclusive, que você tinha acertado em cheio no nome escolhido. E é
“exatamente por isto” que vamos à Capela Dourada.
Caminhamos sorridentes
entre gracejos e pequenos encontrões dos ombros. Tentei o mais que pude
arrancar-lhe aquele sorriso de entrega, de convite, que a tornava deslumbrante.
Continuava muito bonita e o seu sorriso mantinha o traço original que me fez
enlouquecer desde o primeiro dia.
Chegamos. A Capela
Dourada da Venerável Ordem Terceira de São
Francisco, que também recebe o nome de Capela dos Noviços, fica na Rua Imperador Pedro
II, no Bairro de Santo Antônio. Foi construída em 1697; é “uma das mais
expressivas representantes da arte barroca nas igrejas brasileiras” e o ouro é
predominante em sua pintura. Muitos quilos de ouro se derramam por todas as
paredes. Fiquei extasiado. Antes olhamos todas as peças do Museu Franciscano de
Arte Sacra.
O convento era de um
silêncio ensurdecedor. Tudo aquilo incrustado ali, na Rua do Imperador, junto
ao Palácio da Justiça, com vários mendigos pela calçada, defronte à OAB, junto
dos cartórios, mas um oásis de paz, de serenidade, onde parece impossível
computar o tempo.
Apesar dos braços
dados, não nos tocávamos. E lá ia ela a me explicar aos cochichos o que sabia e
suas impressões acerca daquele paraíso perdido. Tudo na voz mais graciosa do
mundo.
Com a mesma graça com
que me arrastou até ali me conduziu para fora e se despediu. Vendo seu sorriso
de despedida, tive certeza de que não mais a veria, a não ser por mero acaso.
Na vã tentativa de retê-la mais uns instantes, perguntei o que tinha para me
dizer naquele dia do Centro de Artes. Respondeu que agora era um segredo e que
segredo só é segredo quando é do conhecimento de apenas uma pessoa; mais de uma
é boato.
– Viu que eu também
sei fazer humor? Não tão bom quanto o seu, mas, eficaz. Aliás, você sabe fazer
tudo bem, inclusive amor.
– O que você quis me
dizer me trazendo aqui, à Capela Dourada? desconversei.
– Você é perspicaz.
Você decifrará. Qualquer dia a gente se vê por aí, tá?
Reagi com a
fragilidade grosseira dos homens, que acreditam poder resolver coisas com
mulher com beijo ou uma trepada: pedi um beijo. Ela sorriu, veio ao meu
encontro, beijou meu rosto, cheirou longamente o meu pescoço e se afastou
acenando. Dobrou a esquina do Palácio da Justiça. Não fui atrás.
Enlouqueci. Passei
dias tentando decifrar a mensagem da Capela Dourada. Pedia aos amigos para
visitá-la na tentativa de traduzir o que vi, mas não entendi. Depois, pedia aos
amigos para não tentar descobrir, pois tinha medo do que me fosse revelado.
Também o que ela ia me dizer no dia do Centro de Artes me aturdia.
Alguns anos depois,
olhando as coisas que lhe escrevi, parecia que ela nunca existiu; que imaginei
tudo aquilo; que se desvaneceu na fumaça de todos os cigarros que lhe
dediquei... “Fumée, rien que fumée2”.
O sinal abriu e aquela
que estava ali, no carro ao lado do meu, cujo perfil me trouxe tanta surpresa,
acelerou. Tentei acompanhar, mas, quando chegou à esquina em que ficava o
sinal, dobrou à esquerda. Fui em frente e nos meus olhos começaram a se projetar
novamente todas as lembranças do que também vivemos juntos. Todavia a nova
história foi cortada por um pensamento que me ocorreu naquele instante: o homem
conta o tempo para não ver a si mesmo; para não ver a própria condição de
transitoriedade e assim poder lamentar o tempo que passou. Mas o tempo, ah, o
tempo, este fica sempre no mesmo lugar (feito um pescador à beira do rio),
espreitando, na celeridade das nossas vidas, a inocência de acreditarmos que
ele não para, apesar de aparentemente inalterado (feito um rio), enquanto nós é
que verdadeiramente, inevitavelmente, vamos passando.
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1 Poeta pernambucano (1929-1960);
2 Fumaça, não mais que fumaça.