Por João Peres
Buenos Aires é algo como São Paulo com alguns milhões de habitantes a
menos. OK, uma constatação um tanto quanto óbvia e extremamente reducionista em
relação às inúmeras diferenças. Mas o que importa é dizer que esses muitos
milhões a menos criam um “esvaziamento demográfico” que, além de melhorias à
qualidade de vida, gera situações que, para quem passou os últimos anos na
capital paulista, parecem passadas em pequenos povoados deste mundo.
Você está almoçando e, de repente, passa pela porta o cineasta Pablo
Trapero (Família Rodante e Leonera). Está tomando o chá da tarde e se depara
com Bielsa, não El Loco Bielsa, mas seu irmão, Rafael, ex-ministro de Relações
Exteriores.
Quando resolve ir ao Museu Jorge Luis Borges, vê na porta Gabriela
Michetti, espécie de ministra-chefe do governo da cidade de Buenos Aires. Como
não fosse suficiente, na sequência sai Maurício Macri, o chefe em si, com sua
“cara de nada”.
O mais interessante nessas últimas andanças, no entanto, ocorreu dois
minutos depois. Quando entro no museu, após superar o borbulho da saída
macrista, uma senhora de irretocável elegância, cabelos meio brancos e meio
pretos – não são grisalhos, não nos confundamos, passa a explicar-me a
visitação com uma incrível quantidade de detalhes.
Alguém a chama pelo nome – Maria – e, por um segundo, passa pela cabeça
que pode ser a esposa de Borges. Mas não, não poderia ser. Eu, leigo em Borges,
tudo o que sabia sobre sua esposa é que era uma pessoa muito mais jovem que
ele. Mas seria, achava eu, impossível que fosse tão mais jovem a ponto de
seguir ativa vinte anos depois da morte do escritor, com cara de senhora
recém-ingressada nas artes da 3ª idade. E mesmo que se mantivesse desta
maneira, não ficaria à porta do museu recebendo as pessoas.
Eis que alguém lhe chama e entrega um envelope: Maria Kodama. Sim, é
ela. Nisso já se haviam passado muitos minutos de conversa com a esposa de
Borges sem sabê-lo. Me senti um dos maiores idiotas da face da Terra. Estava
ali, na minha frente, e não sabia. Nos minutos que se seguiram, duas pessoas se
somaram à conversa e Maria passou a nos apresentar o museu – que, caso alguém
se interesse, fica na Calle Anchorena, Barrio Norte, paralela à Avenida
Puerreydon.
Contou que abriu tudo na raça, com dinheiro que Borges ganhou em um prêmio.
A casa abriga alguns escritos, muitas lembranças, milhares de livros. Em cada
um deles, o escritor fazia observações na contracapa. Em um deles, em letra
miúda, Borges anotou contradições que encontrou ao longo do enredo. “Depois
disso, nunca mais deixei anotações em livros. Você vê o quanto elas revelam da
personalidade das pessoas”, afirma, quase tietante, admirada com a inteligência
e a concentração de Borges.
Ainda há um apartamento abarrotado de coisas do autor, mas falta apoio
para expandir o museu. No entanto, a melhor guia turística sobre Borges está
segura que, no próximo ano, tudo vai sair do papel. Ela conta que a casa ao
lado é aonde o escritor viveu quando era criança. Maria tentou comprar o imóvel
mas, quando contou ao dono que ali havia vivido Borges, a transação se tornou
impossível.
− Você venderia? - pergunta
− De jeito nenhum – respondo
− Pois bem. Eu entendo – afirma Maria.
E dá por encerrada a visita.
Via Nota de Rodapé