Por Alexandre De
Santi, via Superinteressante
Bento Santiago,
o narrador do romance Dom Casmurro, é um advogado de meia-idade, herdeiro da elite fluminense,
que decide contar suas memórias, em especial a suposta traição de Capitu, sua
mulher, com Escobar, seu melhor amigo. Bentinho, como era mais conhecido, passa
a ter certeza do envolvimento amoroso entre os dois no velório do amigo, em que
percebe Capitu olhando fixamente para o morto. A partir daí, começa a enxergar
sinais do adultério em todo lugar, até no rosto do próprio filho Ezequiel, que
seria parecido com Escobar.
Mas nem Bentinho
nem Machado oferecem provas da traição. O leitor só tem acesso ao depoimento do
marido. E a ausência do contraponto de Capitu fez do livro material perfeito
para um eterno e delicioso debate sobre o que "de fato" teria
ocorrido entre a mulher e Escobar - uma improvável caçada pela verdade em uma
obra de ficção. No início, muitos críticos literários aceitaram a versão de
Bentinho sem muito questionamento. Parte do viés bentinista se explica pelo
perfil da sociedade do início do século 20, ainda mais machista do que hoje.
Como o personagem gozava de posição social de respeito, a visão do marido era
suficiente para muitos. Bentinho é convincente. Em várias partes, se dirige
diretamente ao leitor, como se estivesse conversando com um amigo, confessando
sua tristeza. Difícil não se apiedar do tristonho (ou amargurado, ou casmurro)
Bento Santiago.
Ao longo das
décadas, porém, a sociedade mudou, assim como a interpretação do livro. As
mulheres ganharam direitos e liberdades. Aos poucos, Capitu ganhou defensores
e, sobretudo, defensoras. Uma pergunta ficou cada vez mais forte: por que
devemos acreditar no homem rico e branco? Tudo o que estava oculto na obra
emergiu definitivamente nos anos 60, quando uma crítica literária americana
confrontou Bentinho no mundo acadêmico pela primeira vez. Em O "Otelo Brasileiro de Machado
de Assis", lançado em 1960, Helen Caldwell chega a sugerir que Capitu
não traiu Bentinho. O crescente poder da mulher deu uma nova leitura ao
romance, uma interpretação que coloca Capitu como uma vítima de um marido
neurótico. "Alguém já afirmou, em tom de pilhéria, que, se ela não traiu
Bentinho, devia ter traído", diz o professor de literatura Marcelo Frizon.
Na visão de Helen Caldwell, Bentinho é como Otelo, o personagem de Shakespeare
que mata a mulher, Desdêmona, uma inocente, após ser convencido de uma traição
a partir de intrigas do vingativo Iago. As múltiplas interpretações revelam por
que a obra continua sendo adorada por leitores e reverenciada por críticos: ela
guarda mistérios insolucionáveis. Dom Casmurro é um livro de enigmas.
O romance
obrigou críticos e leitores a prestar mais atenção num aspecto decisivo do
texto literário: o narrador. Parece óbvio pensar que o relato de uma pessoa é
um relato parcial sobre as coisas, mas não é tão evidente assim quando se está
em pleno deleite de uma obra-prima - ainda mais quando o narrador tem um texto
elegante, como um lorde inglês
tomando chá da tarde (que merda),
e está precisando de um ombro amigo. O leitor acaba sendo fisgado pelo
envolvente discurso de Bentinho e nem se dá conta de que só está vendo um lado
da história. Esse é um dos trunfos de Dom Casmurro, mas está longe de ser o
único.
(...) Capitu olhou alguns instantes para o cadáver tão fixa, tão apaixonadamente fixa, que não admira lhe saltassem algumas lágrimas poucas e caladas...
O professor de
literatura Sergius Gonzaga diz que há dois textos no romance. Um é aquele em
que Bentinho afirma a traição. Há um outro em que o próprio Bentinho solta
pistas de que tudo não passa de neura da sua cabeça. Essa contraprova é
apresentada quando o narrador afirma que Capitu era muito parecida com a mãe de
Sancha, mulher de Escobar, o suposto amigo traidor. Ou seja, a semelhança entre
o filho de Bentinho e o melhor amigo poderia vir daí - e não de um adultério.
São passagens que revelam que Machado semeou a discórdia de propósito entre
leitores. Casmurro se tornou uma ode às coisas não ditas, às entrelinhas, aos
discursos ocultos (muitas vezes, mais importantes do que as declarações
explícitas).
Dom Casmurro é
também considerado um retrato de como funcionava a sociedade na metade do
século 19. Na época, apenas 20% da população brasileira era alfabetizada. A
obra disseca a nobreza e a elite (onde Bento e sua família se encaixavam), os
homens livres para quem trabalho era algo malvisto (a labuta era considerada
coisa de escravos) e os escravos, que não têm tanta participação no livro.
Além disso, a
Capitu descrita por Bentinho é uma rebelde que diz o que pensa e que dissimula
com naturalidade, como na passagem em que o ex-marido mostra como ela se saiu
bem de uma situação em que eles foram pegos namorando escondidos e que deixara
Bentinho desconcertado. Essas atitudes seriam impensáveis a uma mulher oriunda
de uma classe social baixa, num Brasil ainda escravocrata. "É uma
narrativa que aponta o início da rebelião da mulher diante de uma sociedade
patriarcal", comenta o professor Marcelo Frizon. Machado de Assis previu
uma mudança que viria a tomar forma meio século depois.
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