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Drummond, Vinícius, Bandeira, Quintana e Mendes Campos

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

BOCAGE, O DESBOCCADO; BOCAGE, O DESBANCADO


Bocage


INTRODUCÇÃO

           Por Glauco Mattoso



A fama do portuguez Manuel Maria Barbosa du Bocage (1765-1805) não se divide apenas em "boa" e "má", isto é, entre a modelar poesia arcadica ou romantica e a malexemplar poesia fescennina: esta mesma é motivo de controversia, a partir do poncto em que foi renegada pelo proprio auctor. 

Não vou aqui esmiuçar factos e versões de fontes e perversões. Limito-me a resgatar, para divulgação na rede virtual, a parcella expurgada da producção bocageana, tal como fiz com as "obras livres" de Laurindo Rabello, successor de Bocage no Brasil. Ao seleccionar e annotar os sonetos eroticos do lusitano, não pude, sem embargo, manter-me indifferente a uma hypothese apocrypha que vem incommodando alguns biographos e historiadores. Que Bocage era genial não cabe duvida, como não se desmente a vida devassa que dá respaldo a seus versos. O que intriga o pesquisador é a tendencia a attribuir ao maldicto obras que elle mesmo admittia serem de outrem, mas que editores e leitores "preferiam" que fossem delle, seja por admiração ou diffamação. Hoje não dá para propor revisionismos no que ja se tornou lendario. Resta simplesmente registrar algumas auctorias, que, si fossem cabalmente restabelecidas, dariam a entender que pelo menos o sonetario pornographico pertenceria a nomes menos conhecidos, sinão obscuros.

Citam-se entre os indicios o facto de que o soneto VI teria sido repudiado por Bocage, sob allegação do typo "si fosse meu, o verso 8 ficaria assim ou assado" (nota 3); ou o facto de que o soneto XXXII, que ja parece requentado em comparação com um anonymo do seculo anterior (nota 14), figura em certas anthologias como assignado pelo Abbade de Jazente (vulgo de Paulino Antonio Cabral de Vasconcellos, 1719-1789). Mas a mim parece mais interessante verificar que grande parte dos sonetos mais sexualmente descriptivos e desreprimidos foi achada num caderno onde, segundo algumas fontes, constava o nome de Pedro José Constancio (1778?-1819?), cuja biographia ainda não figura nas encyclopedias e compendios litterarios. Alem do que vae referido na nota 16, vale accrescentar alguma parca informação sobre esse meu xará de cuja obra Bocage teria se "appropriado".

Irmão dum prestigiado escriptor (Francisco Solano Constancio, auctor, entre diversos tractados, duma HISTÓRIA DO BRASIL), o Pedro que tambem foi Podre morreu, sem completar seus quarenta, antes de 1820 e viveu marginalmente, entre a putaria e a loucura. Ou, como se cita, "Enfermidades geradas pelos excessos venereos a que se dava, sem escolha nem reserva, o levaram a um estado valetudinario, atrophiando-lhe as faculdades, e tornando-o incapaz de toda a applicação." Filho dum cirurgião da corte de Dona Maria I, chegou a bacharelar-se em canones pela Universidade de Coimbra, mas só se tem noticia de seu convivio com os poetas contemporaneos (entre os quaes Bocage e José Agostinho) justamente porque estes costumavam interceder em seu favor quando era perseguido e punido pelo comportamento antisocial, ou seja, quando era preso por se exhibir pellado em publico ou por escrever poemas como o soneto XLVIII, que, segundo denuncia ao intendente da policia, era "licencioso" e allusivo à "fornicação dos cães dentro das egrejas". Entre os poucos poemas de Constancio que appareceram impressos está o soneto que reproduzo na nota 16, o qual foi (1812) incluido "por enganno" pelo editor das obras de Bocage e excluido (1820) na reedição.

Fundamentada ou não, a polemica sobre os sonetos bocageanos ou constancianos permanesce secundaria deante do proposito desta selecta, que é introduzir no cyberespaço outra pequena parcella do inexgottavel "veio subterraneo" (como dizia José Paulo Paes) da poesia vernacula: a fescennina. Assim pago meu tributo àquelles que me foram antecessores no genero que escolhi e que levo avante no livro O GLOSADOR MOTEJOSO, no qual pinço alguns dos versos abaixo como mottes para as glosas que compuz no "martello agalopado", ou seja, o decasyllabo heroico iniciado por pé anapestico ao invez de jambico.

Quasi todos os sonetos infra transcriptos foram tirados duma edição paulistana, dentre as innumeras copias que circulam, mais ou menos clandestinamente, do livro ao qual me reporto nos ponctos assignalados pela expressão "nota da fonte". Tracta-se do volume das POESIAS ERÓTICAS, BURLESCAS E SATÍRICAS, publicado em São Paulo pela Editora Escriba em 1969, da qual se transcrevem os sonetos (paginas 99-124).


São Paulo, janeiro de 2002



*****

I [SONETO NAPOLEÔNICO] (1)

Tendo o terrivel Bonaparte à vista,
Novo Hannibal, que esfalfa a voz da Fama,
"Ó cappados heroes!" (aos seus exclama
Purpureo fanfarrão, papal sacrista):

"O progresso estorvae da atroz conquista
Que da philosophia o mal derrama?..."
Disse, e em fervido tom sauda, e chama, [férvido]
Sanctos surdos, varões por sacra lista:

Delles em vão rogando um pio arrojo,
Convulso o corpo, as faces amarellas,
Cede triste victoria, que faz nojo!

O rapido francez vae-lhe às cannellas;
Dá, fere, macta: ficam-lhe em despojo
Reliquias, bullas, merdas, bagatellas.


(1)  Este soneto foi escripto na occasião em que o exercito francez
commandado por Bonaparte invadira os estados ecclesiasticos (1797),
chegando quasi às portas de Roma, e ameaçando o solo pontificio. O verso
nono: "Dellas em vão rogando um pio arrojo," envolve uma especie de
equivoco, ou como hoje se diria um calemburgo [ou trocadilho]; porque
Pio VI era o papa, que então presidia na "universal egreja de Deus". O
penultimo verso lê-se em algumas copias do modo seguinte: "Zumba,
catumba; ficam-lhe em despojo". [nota da fonte]

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