Via AJA
Por Carlos Loures
Em
17 de Maio de 1964, José Afonso actuou na Sociedade Musical
Fraternidade Operária Grandolense, à qual dedicou Grândola,
Vila Morena.
Num apêndice da primeira edição de Cantares,
dizia: “Pequena homenagem à Sociedade Musical Fraternidade
Operária Grandolense, onde actuei juntamente com Carlos Paredes”.
Na primeira edição, de 1967 e com a chancela da Nova Realidade,
Tomar, – uma editora artesanal em que Manuel Simões, Júlio
Estudante e eu publicámos muitos livros que não poderiam ter sido
editados nos circuitos ditos normais – apenas figuravam as duas
primeiras quadras.
Quando,
em 1970, publicámos outro livro do Zeca, Cantar
de Novo,
com um magnífico prefácio de António Cabral, o poema surgia já na
sua forma definitiva, com três quadras. Mas, voltando à noite de
1964 em que o Zeca actuou na Sociedade Musical Fraternidade Operária
Grandolense, a «Música Velha», como a colectividade é designada
pelas gentes da terra, pode dizer-se que essa actuação mudou a sua
vida. Cantou perante uma assistência constituída maioritariamente
por gente pobre, mas faminta de cultura – trabalhadores da
indústria corticeira, amadores de música, ceifeiras, alguns
clandestinos ligados ao Partido Comunista… José Saramago, então
um escritor quase desconhecido, estava também entre a assistência.
Mais
tarde, após a morte de Zeca, Saramago interrogava-se sobre o que
José Afonso sentiria se pudesse observar o rumo social e político
do Portugal dos nossos dias – «Creio que estaria, pelo menos, tão
desanimado como eu», conclui o Nobel. Nesta sessão histórica,
conheceu Carlos Paredes, o prodigioso guitarrista – «o que esse
bicho faz com a guitarra!», exclamava Zeca numa carta aos pais.
Apaixonado pela vila, comprou uma pequena parcela de terreno em
Grândola, com uma modesta casa, onde gostava de passar os seus
tempos livres. Grândola cativara-o definitivamente pelo ambiente
fraterno que envolvia as suas gentes. Pedro Martins da Costa,
militante do PCP e, a partir de 1974, vice-presidente do município
durante mais de 25 anos, presente no famoso concerto de 1964, diz que
ao Zeca agradou sobretudo a igualdade que ali existia antes e depois
da Revolução de Abril – continuaram a ser «tão igualitários
que nem se sabia quem era o presidente». A letra da canção não
constitui, portanto, um conjunto de simples metáforas…
Em
Maio de 1972, numa récita em Santiago de Compostela, o Zeca estreava
a canção. Em 29 de Março de 1974, realizou-se no Coliseu dos
Recreios um «Canto Livre» onde, além de Zeca, participaram outros
cantores. Acabaram, interpretando em coro Grândola,
Vila Morena.
Oficiais do MFA que assistiam ao concerto, escolheram nesta altura a
senha para o arranque do levantamento militar. Para terminar,
voltemos a Grândola – durante anos, na placa toponímica da vila,
fechando o círculo de interacções entre a «cidade» e o seu
cantor, lia-se Grândola,
Vila Morena –
Grândola mudou a vida de Zeca e Zeca alterou a vida e a história da
vila. Actualmente, a placa foi retirada – decisão política?
Gostaria de saber. O que José Saramago fez por Mafra e o que José
Afonso fez por Grândola, provando que a arte ainda tem algum poder,
devia merecer o respeito e a gratidão não só das populações, mas
principalmente a dos autarcas – seja qual for o partido a que
pertençam. Sem generalizar, diria que, muitas vezes, à frente das
autarquias está gente mesquinha e rasteira que teme que a grandeza e
a glória de pessoas como o Saramago e o Zeca oculte a luz cediça
das suas insignificantes personalidades.
Como
se diz numa reportagem de Miguel Mora publicada no El País : «Hoje,
em pleno centro de Grândola, a Sociedade Musical Fraternidade
Operária Grandolense, continua de pé, sóbria e austera. Resiste,
embora tenha estado durante algum tempo fechada e rodeada de tapumes
para reconstrução. O tijolo, a construção civil, foram
substituindo a pouco e pouco a cortiça, o arroz como fonte de
riqueza do concelho». Os tapumes já foram retirados. Porém, no
interior vazio da Música Velha, subsistem, pelo menos no imaginário
dos que amam a liberdade, os ecos nostálgicos do que ali ocorreu
naquela noite mágica de Maio de 1964.