Por Erick Moraes, via Obvius
"Naquela
família assoberbada de trabalho e exausta, havia lá alguém que
tivesse tempo para se preocupar com Gregor mais do que o estritamente
necessário!" A Metamorfose, Franz Kafka.
"As
coisas que nos assustam são em maior número do que as que
efetivamente fazem mal, e afligimo-nos mais pelas aparências do que
pelos fatos reais." A sabedoria de Sêneca, na citada frase,
poderia ser uma bela sinopse do que Franz Kafka apresenta na obra "A
Metamorfose", uma vez que o real parece não fazer sentido ante
as aparências.
"Numa
manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregor Samsa deu por si
na cama transformado num gigantesco inseto."
A
novela do escritor tcheco inicia-se de forma incisiva, em que o
protagonista da história - Gregor Samsa - encontra-se metamorfoseado
num inseto gigante. Dessa forma, o início da novela já é o clímax,
o que faz da obra extremamente profunda nas suas poucas páginas.
Talvez, não haveria como ser diferente, pois o que pretende-se
mostrar é a verdadeira face humana e esta parece demonstrar-se
somente nos momentos de conflito.
Ao
estar metamorfoseado em inseto, Gregor Samsa não é visto como de
fato é, mas sim por aquilo que aparenta ser, isto é, um monstro, o
qual todos tinham de suportar. Embora, continuasse sendo o mesmo
Gregor, perante os outros isso não importava, pois o que enxergavam
era um inseto gigante. O próprio protagonista chega, logo no início
a questionar-se sobre a sua essência:
"Estarei
agora menos sensível?"
Gregor
Samsa, assim, era visto como um peso para a família, a qual deveria
suportar. Kafka, aqui nos mostra a realidade da sociedade, sobretudo,
capitalista que restringe o valor do ser humano ao que produz e às
aparências, uma vez que, quando "normal", era Gregor o
responsável pelo provimento da família. Contudo, ao metamorfosea-se
em inseto, tornou-se impossibilitado de prover a sua família, de
modo que, na medida em que Gregor não pode os prover, perde o seu
valor.
A
metamorfose de Gregor evidencia que as relações sociais são
pautadas pelos interesses, pois, embora o protagonista seja uma
pessoa altruísta, preocupada com o bem estar da família, ele passa
a ser excluído pela mesma, dado que o que os interessava em Gregor
não é possível naquela situação. Essa exclusão gera um
sentimento de solidão em Gregor, a qual alimenta o seu sentimento de
impotência e tristeza e, por conseguinte, diversos problemas
psicológicos (típicos do homem contemporâneo).
Assim
sendo, o que importa são os resultados, ou seja, somente relações
que possam trazer benefícios são necessárias, de tal maneira que
uma relação que traga apenas custo é vista como um peso que deve
ser jogado fora na primeira oportunidade. Aquele inseto gigantesco, o
qual Gregor acreditava que ainda fosse ele, para a família não
passava de um peso que tinha que suportar:
"Não
que eles desejassem que ele morresse de fome, claro está, mas talvez
porque não pudessem suportar saber mais sobre as suas refeições do
que aquilo que sabiam pela boca da irmã, e talvez ainda porque a
irmã os quisesse poupar a todas as preocupações, por mais pequenas
que fossem, visto o que eles tinham de suportar ser mais do que
suficiente."
Como
dito, o próprio Gregor se vê como um peso e senti-se na obrigação
de poupar os outros daquela visão asquerosa que possuía, como se os
sentimentos que o constitui não estivessem no mesmo lugar. Embora,
fosse ele que estivesse naquela situação e, portanto, devesse
receber ajuda para atravessar o infortúnio, em verdade, acontecia o
contrário, em que ele deveria esconder-se para não assustar a sua
família.
"Este
acontecimento revelou a Gregor a repulsa que o seu aspecto provocava
ainda à irmã e o esforço que devia custar-lhe não desatar a
correr mal via a pequena porção do seu corpo que aparecia sob o
sofá. Nestas condições, decidiu um dia poupá-la a tal visão e, à
custa de quatro horas de trabalho, pôs um lençol pelas costas e
dirigiu-se para o sofá, dispondo-o de modo a ocultar-lhe totalmente
o corpo, mesmo que a irmã se baixasse para espreitar."
Essa
repulsa que a família tinha ao seu aspecto representava a repulsa
àquela condição que nada poderia oferecer além de trabalho. O
medo já começara a transforma-se em ódio, já que, à proporção
que o tempo passava, a família entendia que, naquele estado, Gregor
era um peso desnecessário.
Aliás,
aquilo não era Gregor, não possuía sentimentos, causava pânico e
colocava em choque a tranquilidade da família. Assim, aquela
criatura asquerosa só poderia ser tratada da mesma forma que se
aparentava. Era necessário medidas violentas para provocar o
entendimento de Gregor.
"Mas
Gregor não podia arriscar-se a enfrentá-lo, pois desde o primeiro
dia da sua nova vida se tinha apercebido de que o pai considerava que
só se podia lidar com ele adotando as mais violentas medidas."
Esse
ódio que a família passa a nutrir por Gregor é simbolicamente
condensado na maçã que o pai o atirara. O inseto monstruoso merecia
aquele ódio, pois para a família, naquele estado, Gregor era
desprovido de virtudes. Gregor acreditava ser sua a obrigação de
cuidar da família - e a família agia como se fosse - de tal maneira
que a única virtude que ele possuía era garantir os proventos e,
assim, quando metamorfoseado Gregor perde a sua única virtude, sendo
merecedor do ódio da família. Afinal, o que restara?
Para
a família, apenas trabalho, uma vez que agora (sem Gregor) deveriam
cuidar dos seus proventos, fato o qual lhes custavam enorme energia.
Ademais, tinha o "pesado" inseto gigantesco, o qual lhes
consumia o resto da energia. Portanto, seria uma injustiça por parte
de Gregor exigir mais do que faziam. Ora, ele mesmo deixou-os naquela
situação de exaustão. Curioso é, que Gregor sozinho conseguia
prover tudo que a família precisava, tendo que aguentar um trabalho
que não suportava, mas, ainda assim, não reclamara da família. O
Gregor, contudo, deveria receber de bom grado tudo sua família fazia
por ele.
"Naquela
família assoberbada de trabalho e exausta, havia lá alguém que
tivesse tempo para se preocupar com Gregor mais do que o estritamente
necessário!"
O
tratamento que recebia, assim como o isolamento fazia Gregor
entristecer e perder potência, pois já não era fácil estar
naquela situação e ainda ser tratado da forma como aparentava não
fazia sentido para ele, já que continuava o mesmo Gregor Samsa por
dentro. Ou seja, como poderia ser tratado como um monstro se ainda
sentia as mesmas coisas?
"Poderia
ser realmente um animal, quando a música tinha sobre si tal efeito?"
É
evidente que Gregor em nenhum momento foi visto como um ser com
sentimentos e que precisava de ajuda, todos ao seu redor só
conseguiam enxergar o superficial, o raso. Por medo? Talvez, sabemos
que é preciso coragem para ter uma relação verdadeira e profunda.
Mas, acima de tudo, Gregor Samsa perdera o seu valor. Não o valor
que faz dele quem é, mas o valor simbólico que a sua família o
atribuía e que restringia-se a provê-los.
Esse
traço, hoje, parece ser ainda mais claro e nisso reside a
genialidade de Kafka. As relações são líquidas e pautadas em
resultados, esforçar-se por alguém está fora de questão. A sua
família é incapaz de colocar-se em seu lugar, logo ele, que até
ali carregava o peso da família sozinho, era visto com um fardo
insuportável.
"Não
pronunciarei o nome do meu irmão na presença desta criatura e,
portanto, só digo isto: temos que ver-nos livres dela. Tentávamos
cuidar desse bicho e suportá-lo até onde era humanamente possível,
e acho que ninguém tem seja o que for a censurar-nos."
Há
de se reconhecer que ter alguém naquela situação era difícil,
contudo, os relacionamentos trazem peso, esforço e o que nos permite
carregá-los é o amor, e este não existia em relação a Gregor.
Além disso, a exclusão e a culpa que impunham a Gregor foram pouco
a pouco tornando-o mais impotente, triste e sentido-se o monstro que
todos achavam.
Diante
disso, só restara um fim, a morte, que representou uma libertação
para sua família. A causa da morte? Uma maçã podre que carregara
no seu dorso, que o fazia pesado, embora estivesse vazio; uma maçã
que representava o ódio que sua família o nutria; uma maçã que o
levava ao chão, como um inseto. E assim:
"...
a cabeça pendeu-lhe inevitavelmente para o chão e soltou-se-lhe
pelas narinas um último e débil suspiro."