Aos Mestres, com carinho!

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Drummond, Vinícius, Bandeira, Quintana e Mendes Campos

domingo, 17 de abril de 2016

A era do drama fora de contexto, nascida com a internet, por Ubiratan Muarrek



Por Ubiratan Muarrek

A Internet dos sonhos nasceu na década de 90, e morreu em algum ponto próximo a 2007. Até meados dessa data, acreditava-se que a world wide web revolucionaria, para melhor, praticamente todos os aspectos da vida humana, da economia à cultura, passando pela democracia, entendimento global e a qualidade das relações pessoais.

Em 2016, revelada a ambição de Mark Zuckeberg de consolidar o império do Facebook em meio a destroços — da economia, cultura, democracia, entendimento global e relações pessoais  , reinterpretações do verdadeiro caráter da rede começam a colocar as coisas em seu devido lugar.

Em 2007, quem imaginaria, por exemplo, que o close de uma marmota para uma câmera, sob o suspense de uma trilha sonora retirada do filme Jovem Frankenstein, equivaleria a um napalm cultural?

E que a mistura de drama e nonsense contaminaria o fluxo de informações de tal maneira que inauguraria uma nova era na comunicação digital?

Para cada novo estilo ou jeito de fazer as coisas, os que saem na frente dão, via de regra, o tom do que virá depois. Na comunicação instantânea, o vídeo Marmota Dramática é o representante mais vistoso da inauguração de uma nova era.

A Era do Drama Fora de Contexto, nascida com a Internet: 

Dezenas de milhões de visualizações depois, fica mais claro agora, com o fluxo de informações contínuo a que nos submetemos, perceber que a Marmota Dramática não adicionava apenas seis segundos de humor e estupidez no vasto repertório da comédia humana.

A marmota fornece o formato, uma espécie de receita de como existir e ser notadoou seja, como fazer comunicaçãonum contexto viral.

Considere alguns bilhões de pessoas, conectadas por aplicativos de fácil acesso, dispostasávidasa compartilhar o que lhes caia, literalmente, nas mãos.

Encontre a sua marmotaconsidere as lutas de classe, as polarizações de raça e gênero, as disputas econômicas, o esgoto da política, a miséria produzida pelas redações, o apreço pela desgraça alheia, as catástrofes naturais, os preconceitos milenares, traições, CPIse o ressentimento, que inflama tudo isso e prospera igualmente entre os 99% do lado de cá e os 1% de Wall Street.

Selecione cenas que reflitam parcialmente, ou que em nada reflitam, o contexto natural das dissensões.

Adicione Tchaikovsky. Ou Iron Maiden. E aperte o botão “enviar”.

A Internet cuidará do resto. Basta checar os viewslikes, shares retweets.

Vejamos o exemplo da marmota. É inacreditável o fato de que os seis segundos que representam um abalo na cultura tenham sido extirpados de uma ingênua apresentação de pets (ou seja lá sobre o que seja) num programa vespertino da TV japonesa.

Veja com seus olhos (nossa marmota aparece aos 2´30"): 
E é incrível como os seis segundos “originais” foram editados e reeditados em centenas de versõesoutro elemento do zeitgeist: editar e reeditarpor mentes brilhantes e criativas das quais ninguém nunca ouviu, e provavelmente nem irá ouvir, falar (insight: sempre haverá alguém capaz de descontextualizar algo melhor do que você).

E chegamos ao Marmota Remix: 
Os efeitos dessa reviravolta na comunicação, porém, talvez não sejam tão incrivelmente divertidos.

Podemos até rir com a marmota-Bin-Laden. A versão Star Wars é particularmente engraçada!

Porém, o sex tape de uma filha adolescente, a transcrição parcial da conversa telefônica de um funcionário público, ou um trecho selecionado de um relatório de governo, “vazados na Internet”, podem ter consequências devastadoras.

Atrás da expressão de “surpresa” da marmota, escondia-se um elemento central, a partir da entrada da Internet na totalidade da vida cotidiana: um cenário social e político de crise e disputa permanente de significados e valores, que se renova e se reafirma a cada susto que tomamos num alerta de WhatsApp.

A afirmação do poder pelo controle da imagem remonta ao despertar dos séculos. Da monumentalidade das pirâmides do Egito, aos desfiles pomposos dos monarcas europeus, havíamos chegado ao controle minucioso e profissional das aparições de políticos e celebridades na televisão.

Então, surgiu a Internet.

Com ela, o fluxo de informações se instala, as mentesincluindo as insanas— se empoderam com as novas mídias, e a crescente ansiedade coletiva chamada globalização se soma à dificuldade cada vez maior de lidar com a complexidade de um mundo em transformação.

Como bem aprendeu o Estado Islâmico, que recontextualiza rituais ancestrais de terror em vídeos de visibilidade— e capacidade de intimidaçãoglobal, qual melhor maneira de tirar proveito disso, que não sejam seis segundos de choque e pavor?

Bem-vindos à Era da Marmota. Tome um Lexotan e siga o flow.