Heterónimos de Fernando Pessoa, gravuras murais da Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa
A
genialidade com que Fernando Pessoa teria criado os seus heterônimos,
bem como a riqueza poética havida em cada um deles, sempre intriga e
instiga-nos à compreensão. A explicação abaixo é do próprio
Pessoa e certamente será esclarecedora.
[Carta
a Adolfo Casais Monteiro - 13 Jan. 1935]
Caixa
Postal 147
Lisboa,
13 de Janeiro de 1935.
Meu
prezado Camarada:
Muito
agradeço a sua carta, a que vou responder imediata e integralmente.
Antes de, propriamente, começar, quero pedir-lhe desculpa de lhe
escrever neste papel de cópia. Acabou-se-me o decente, é domingo, e
não posso arranjar outro. Mas mais vale, creio, o mau papel que o
adiamento.
Em
primeiro lugar, quero dizer-lhe que nunca eu veria «outras razões»
em qualquer coisa que escrevesse, discordando, a meu respeito. Sou um
dos poucos poetas portugueses que não decretou a sua própria
infalibilidade, nem toma qualquer crítica, que se lhe faça, como um
acto de lesa-divindade. Além disso, quaisquer que sejam os meus
defeitos mentais, é nula em mim a tendência para a mania da
perseguição. À parte isso, conheço já suficientemente a sua
independência mental, que, se me é permitido dizê-lo, muito aprovo
e louvo. Nunca me propus ser Mestre ou Chefe-Mestre, porque não sei
ensinar, nem sei se teria que ensinar; Chefe, porque nem sei estrelar
ovos. Não se preocupe, pois, em qualquer ocasião, com o que tenha
que dizer a meu respeito. Não procuro caves nos andares nobres.
Concordo
absolutamente consigo em que não foi feliz a estreia, que de mim
mesmo fiz com um livro da natureza de «Mensagem».
Sou, de facto, um nacionalista místico, um sebastianista racional.
Mas sou, à parte isso, e até em contradição com isso, muitas
outras coisas. E essas coisas, pela mesma natureza do livro, a
«Mensagem»
não as inclui.
Comecei
por esse livro as minhas publicações pela simples razão de que foi
o primeiro livro que consegui, não sei porquê, ter organizado e
pronto. Como estava pronto, incitaram-me a que o publicasse: acedi.
Nem o fiz, devo dizer, com os olhos postos no prémio possível do
Secretariado, embora nisso não houvesse pecado intelectual de maior.
O meu livro estava pronto em Setembro, e eu julgava, até, que não
poderia concorrer ao prémio, pois ignorava que o prazo para entrega
dos livros, que primitivamente fora até fim de Julho, fora alargado
até ao fim de Outubro. Como, porém, em fim de Outubro já havia
exemplares prontos da «Mensagem»,
fiz entrega dos que o Secretariado exigia. O livro estava exactamente
nas condições (nacionalismo) de concorrer. Concorri.
Quando
às vezes pensava na ordem de uma futura publicação de obras
minhas, nunca um livro do género de «Mensagem»
figurava em número um. Hesitava entre se deveria começar por um
livro de versos grande — um livro de umas 350 páginas — ,
englobando as várias subpersonalidades de Fernando Pessoa ele mesmo,
ou se deveria abrir com uma novela policiária, que ainda não
consegui completar.
Concordo
consigo, disse, em que não foi feliz a estreia, que de mim mesmo
fiz, com a publicação de «Mensagem».
Mas concordo com os factos que foi a melhor estreia que eu poderia
fazer. Precisamente porque essa faceta — em certo modo secundária
— da minha personalidade não tinha nunca sido suficientemente
manifestada nas minhas colaborações em revistas (excepto no caso
do Mar
Português parte
deste mesmo livro) — precisamente por isso convinha que ela
aparecesse, e que aparecesse agora. Coincidiu, sem que eu o planeasse
ou o premeditasse (sou incapaz de premeditação prática), com um
dos momentos críticos (no sentido original da palavra) da
remodelação do subconsciente nacional. O que fiz por acaso e se
completou por conversa, fora exactamente talhado, com Esquadria e
Compasso, pelo Grande Arquitecto.
(Interrompo.
Não estou doido nem bêbado. Estou, porém, escrevendo directamente,
tão depressa quanto a máquina mo permite, e vou-me servindo das
expressões que me ocorrem, sem olhar a que literatura haja nelas.
Suponha — e fará bem em supor, porque é verdade — que estou
simplesmente falando consigo).
Respondo
agora directamente às suas três perguntas: (1) plano futuro da
publicação das minhas obras, (2) génese dos meus heterónimos, e
(3) ocultismo.
Feita,
nas condições que lhe indiquei, a publicação da «Mensagem»
, que é uma manifestação unilateral, tenciono prosseguir da
seguinte maneira. Estou agora completando uma versão inteiramente
remodelada do Banqueiro
Anarquista,
essa deve estar pronta em breve e conto, desde que esteja pronta,
publicá-la imediatamente. Se assim fizer, traduzo imediatamente esse
escrito para inglês, e vou ver se o posso publicar em Inglaterra.
Tal qual deve ficar, tem probabilidades europeias. (Não tome esta
frase no sentido de Prémio Nobel imanente). Depois — e agora
respondo propriamente à sua pergunta, que se reporta a poesia —
tenciono, durante o verão, reunir o tal grande volume dos poemas
pequenos do Fernando Pessoa ele mesmo, e ver se o consigo publicar em
fins do ano em que estamos. Será esse o volume que o Casais Monteiro
espera, e é esse que eu mesmo desejo que se faça. Esse, então,
será as facetas todas, excepto a nacionalista, que «Mensagem»
já manifestou.
Referi-me,
como viu, ao Fernando Pessoa só. Não penso nada do Caeiro, do
Ricardo Reis ou do Álvaro de Campos. Nada disso poderei fazer, no
sentido de publicar, excepto quando (ver mais acima) me for dado o
Prémio Nobel. E contudo — penso-o com tristeza — pus no Caeiro
todo o meu poder de despersonalização dramática, pus em Ricardo
Reis toda a minha disciplina mental, vestida da música que lhe é
própria, pus em Álvaro de Campos toda a emoção que não dou nem a
mim nem à vida. Pensar, meu querido Casais Monteiro, que todos estes
têm que ser, na prática da publicação, preteridos pelo Fernando
Pessoa, impuro e simples!
Creio
que respondi à sua primeira pergunta.
Se
fui omisso, diga em quê. Se puder responder, responderei. Mais
planos não tenho, por enquanto. E, sabendo eu o que são e em que
dão os meus planos, é caso para dizer, Graças
a Deus!
Passo
agora a responder à sua pergunta sobre a génese dos meus
heterónimos. Vou ver se consigo responder-lhe completamente.
Começo
pela parte psiquiátrica. A origem dos meus heterónimos é o fundo
traço de histeria que existe em mim. Não sei se sou simplesmente
histérico, se sou, mais propriamente, um histero-neurasténico.
Tendo para esta segunda hipótese, porque há em mim fenómenos de
abulia que a histeria, propriarmente dita, não enquadra no registo
dos seus sintomas. Seja como for, a origem mental dos meus
heterónimos está na minha tendência orgânica e constante para a
despersonalização e para a simulação. Estes fenómenos —
felizmente para mim e para os outros — mentalizaram-se em mim;
quero dizer, não se manifestam na minha vida prática, exterior e de
contacto com outros; fazem explosão para dentro e vivo — os eu a
sós comigo. Se eu fosse mulher — na mulher os fenómenos
histéricos rompem em ataques e coisas parecidas — cada poema de
Álvaro de Campos (o mais histericamente histérico de mim) seria um
alarme para a vizinhança. Mas sou homem — e nos homens a histeria
assume principalmente aspectos mentais; assim tudo acaba em silêncio
e poesia...
Isto
explica, tant
bien que mal,
a origem orgânica do meu heteronimismo. Vou agora fazer-lhe a
história directa dos meus heterónimos. Começo por aqueles que
morreram, e de alguns dos quais já me não lembro — os que jazem
perdidos no passado remoto da minha infância quase esquecida.
Desde
criança tive a tendência para criar em meu torno um mundo fictício,
de me cercar de amigos e conhecidos que nunca existiram. (Não sei,
bem entendido, se realmente não existiram, ou se sou eu que não
existo. Nestas coisas, como em todas, não devemos ser dogmáticos).
Desde que me conheço como sendo aquilo a que chamo eu, me lembro de
precisar mentalmente, em figura, movimentos, carácter e história,
várias figuras irreais que eram para mim tão visíveis e minhas
como as coisas daquilo a que chamamos, porventura abusivamente, a
vida real. Esta tendência, que me vem desde que me lembro de ser um
eu, tem-me acompanhado sempre, mudando um pouco o tipo de música com
que me encanta, mas não alterando nunca a sua maneira de encantar.
Lembro,
assim, o que me parece ter sido o meu primeiro heterónimo, ou,
antes, o meu primeiro conhecido inexistente — um certoChevalier
de Pas dos
meus seis anos, por quem escrevia cartas dele a mim mesmo, e cuja
figura, não inteiramente vaga, ainda conquista aquela parte da minha
afeição que confina com a saudade. Lembro-me, com menos nitidez, de
uma outra figura, cujo nome já me não ocorre mas que o tinha
estrangeiro também, que era, não sei em quê, um rival do Chevalier
de Pas... Coisas que acontecem a todas as crianças? Sem dúvida —
ou talvez. Mas a tal ponto as vivi que as vivo ainda, pois que as
relembro de tal modo que é mister um esforço para me fazer saber
que não foram realidades.
Esta
tendência para criar em torno de mim um outro mundo, igual a este
mas com outra gente, nunca me saiu da imaginação. Teve várias
fases, entre as quais esta, sucedida já em maioridade. Ocorria-me um
dito de espírito, absolutamente alheio, por um motivo ou outro, a
quem eu sou, ou a quem suponho que sou. Dizia-o, imediatamente,
espontaneamente, como sendo de certo amigo meu, cujo nome inventava,
cuja história acrescentava, e cuja figura — cara, estatura, traje
e gesto — imediatamente eu via diante de mim. E assim arranjei, e
propaguei, vários amigos e conhecidos que nunca existiram, mas que
ainda hoje, a perto de trinta anos de distância, oiço, sinto, vejo.
Repito: oiço, sinto vejo... E tenho saudades deles.
(Em
eu começando a falar — e escrever à máquina é para mim falar —
, custa-me a encontrar o travão. Basta de maçada para si, Casais
Monteiro! Vou entrar na génese dos meus heterónimos literários,
que é, afinal, o que V. quer saber. Em todo o caso, o que vai dito
acima dá-lhe a história da mãe que os deu à luz).
Aí
por 1912, salvo erro (que nunca pode ser grande), veio-me à ideia
escrever uns poemas de índole pagã. Esbocei umas coisas em verso
irregular (não no estilo Álvaro de Campos, mas num estilo de meia
regularidade), e abandonei o caso. Esboçara-se-me, contudo, numa
penumbra mal urdida, um vago retrato da pessoa que estava a fazer
aquilo. (Tinha nascido, sem que eu soubesse, o Ricardo Reis).
Ano
e meio, ou dois anos depois, lembrei-me um dia de fazer uma partida
ao Sá-Carneiro — de inventar um poeta bucólico, de espécie
complicada, e apresentar-lho, já me não lembro como, em qualquer
espécie de realidade. Levei uns dias a elaborar o poeta mas nada
consegui. Num dia em que finalmente desistira — foi em 8 de Março
de 1914 — acerquei-me de uma cómoda alta, e, tomando um papel,
comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi
trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza
não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca
poderei ter outro assim. Abri com um título, O
Guardador de Rebanhos.
E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei
desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da frase:
aparecera em mim o meu mestre. Foi essa a sensação imediata que
tive. E tanto assim que, escritos que foram esses trinta e tantos
poemas, imediatamente peguei noutro papel e escrevi, a fio, também,
os seis poemas que constituem a Chuva
Oblíqua,
de Fernando Pessoa. Imediatamente e totalmente... Foi o regresso de
Fernando Pessoa Alberto Caeiro a Fernando Pessoa ele só. Ou, melhor,
foi a reacção de Fernando Pessoa contra a sua inexistência como
Alberto Caeiro.
Aparecido
Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir — instintiva e
subconscientemente — uns discípulos. Arranquei do seu falso
paganismo o Ricardo Reis latente, descobri-lhe o nome, e ajustei-o a
si mesmo, porque nessa altura já o via.
E, de repente, e em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me
impetuosamente um novo indivíduo. Num jacto, e à máquina de
escrever, sem interrupção nem emenda, surgiu a Ode
Triunfal de
Álvaro de Campos — a Ode com esse nome e o homem com o nome que
tem.
Criei,
então, uma coterie inexistente.
Fixei aquilo tudo em moldes de realidade. Graduei as influências,
conheci as amizades, ouvi, dentro de mim, as discussões e as
divergências de critérios, e em tudo isto me parece que fui eu,
criador de tudo, o menos que ali houve. Parece que tudo se passou
independentemente de mim. E parece que assim ainda se passa. Se algum
dia eu puder publicar a discussão estética entre Ricardo Reis e
Álvaro de Campos, verá como eles são diferentes, e como eu não
sou nada na matéria.
Quando
foi da publicação de «Orpheu»,
foi preciso, à última hora, arranjar qualquer coisa para completar
o número de páginas. Sugeri então ao Sá-Carneiro que eu fizesse
um poema «antigo» do Álvaro de Campos — um poema de como o
Álvaro de Campos seria antes de ter conhecido Caeiro e ter caído
sob a sua influência. E assim fiz o Opiário,
em que tentei dar todas as tendências latentes do Álvaro de Campos,
conforme haviam de ser depois reveladas, mas sem haver ainda qualquer
traço de contacto com o seu mestre Caeiro. Foi dos poemas que tenho
escrito, o que me deu mais que fazer, pelo duplo poder de
despersonalização que tive que desenvolver. Mas, enfim, creio que
não saiu mau, e que dá o Álvaro em botão...
Creio
que lhe expliquei a origem dos meus heterónimos. Se há porém
qualquer ponto em que precisa de um esclarecimento mais lúcido —
estou escrevendo depressa, e quando escrevo depressa não sou muito
lúcido — , diga, que de bom grado lho darei. E, é verdade, um
complemento verdadeiro e histérico: ao escrever certos passos
das Notas
para recordação do meu Mestre Caeiro,
do Álvaro de Campos, tenho chorado lágrimas verdadeiras. É para
que saiba com quem está lidando, meu caro Casais Monteiro!
Mais
uns apontamentos nesta matéria... Eu vejo diante
de mim, no espaço incolor mas real do sonho, as caras, os gestos de
Caeiro, Ricardo Reis e Alvaro de Campos. Construi-lhes as idades e as
vidas. Ricardo Reis nasceu em 1887 (não me lembro do dia e mês, mas
tenho-os algures), no Porto, é médico e está presentemente no
Brasil. Alberto Caeiro nasceu em 1889 e morreu em 1915; nasceu em
Lisboa, mas viveu quase toda a sua vida no campo. Não teve profissão
nem educação quase alguma. Álvaro de Campos nasceu em Tavira, no
dia 15 de Outubro de 1890 (às 1.30 da tarde, diz-me o Ferreira
Gomes; e é verdade, pois, feito o horóscopo para essa hora, está
certo). Este, como sabe, é engenheiro naval (por Glasgow), mas agora
está aqui em Lisboa em inactividade. Caeiro era de estatura média,
e, embora realmente frágil (morreu tuberculoso), não parecia tão
frágil como era. Ricardo Reis é um pouco, mas muito pouco, mais
baixo, mais forte, mas seco. Álvaro de Campos é alto (1,75 m de
altura, mais 2 cm do que eu), magro e um pouco tendente a curvar-se.
Cara rapada todos — o Caeiro louro sem cor, olhos azuis; Reis de um
vago moreno mate; Campos entre branco e moreno, tipo vagamente de
judeu português, cabelo, porém, liso e normalmente apartado ao
lado, monóculo. Caeiro, como disse, não teve mais educação que
quase nenhuma — só instrução primária; morreram-lhe cedo o pai
e a mãe, e deixou-se ficar em casa, vivendo de uns pequenos
rendimentos. Vivia com uma tia velha, tia-avó. Ricardo Reis, educado
num colégio de jesuítas, é, como disse, médico; vive no Brasil
desde 1919, pois se expatriou espontaneamente por ser monárquico. É
um latinista por educação alheia, e um semi-helenista por educação
própria. Álvaro de Campos teve uma educação vulgar de liceu;
depois foi mandado para a Escócia estudar engenharia, primeiro
mecânica e depois naval. Numas férias fez a viagem ao Oriente de
onde resultou o Opiário.
Ensinou-lhe latim um tio beirão que era padre.
Como
escrevo em nome desses três?... Caeiro por pura e inesperada
inspiração, sem saber ou sequer calcular que iria escrever. Ricardo
Reis, depois de uma deliberação abstracta, que subitamente se
concretiza numa ode. Campos, quando sinto um súbito impulso para
escrever e não sei o quê. (O meu semi-heterónimo Bernardo Soares,
que aliás em muitas coisas se parece com Álvaro de Campos, aparece
sempre que estou cansado ou sonolento, de sorte que tenha um pouco
suspensas as qualidades de raciocínio e de inibição; aquela prosa
é um constante devaneio. É um semi-heterónimo porque, não sendo a
personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples
mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e a afectividade. A
prosa, salvo o que o raciocínio dá de ténue à minha, é igual a
esta, e o português perfeitamente igual; ao passo que Caeiro
escrevia mal o português, Campos razoavelmente mas com lapsos como
dizer «eu próprio» em vez de «eu mesmo», etc., Reis melhor do
que eu, mas com um purismo que considero exagerado. O difícil para
mim é escrever a prosa de Reis — ainda inédita — ou de Campos.
A simulação é mais fácil, até porque é mais espontânea, em
verso).
Nesta
altura estará o Casais Monteiro pensando que má sorte o fez cair,
por leitura, em meio de um manicómio. Em todo o caso, o pior de tudo
isto é a incoerência com que o tenho escrito. Repito, porém:
escrevo como se estivesse falando consigo, para que possa escrever
imediatamente. Não sendo assim, passariam meses sem eu conseguir
escrever.
Falta
responder à sua pergunta quanto ao ocultismo (escreveu o poeta).
Pergunta-me se creio no ocultismo. Feita assim, a pergunta não é
bem clara; compreendo porém a intenção e a ela respondo. Creio na
existência de mundos superiores ao nosso e de habitantes desses
mundos, em experiências de diversos graus de espiritualidade,
subtilizando até se chegar a um Ente Supremo, que presumivelmente
criou este mundo. Pode ser que haja outros Entes, igualmente
Supremos, que hajam criado outros universos, e que esses universos
coexistam com o nosso, interpenetradamente ou não. Por estas razões,
e ainda outras, a Ordem Extrema do Ocultismo, ou seja, a Maçonaria,
evita (excepto a Maçonaria anglo-saxónica) a expressão «Deus»,
dadas as suas implicações teológicas e populares, e prefere dizer
«Grande Arquitecto do Universo», expressão que deixa em branco o
problema de se Ele é criador, ou simples Governador do mundo. Dadas
estas escalas de seres, não creio na comunicação directa com Deus,
mas, segundo a nossa afinação espiritual, poderemos ir comunicando
com seres cada vez mais altos. Há três caminhos para o oculto: o
caminho mágico (incluindo práticas como as do espiritismo,
intelectualmente ao nível da bruxaria, que é magia também),
caminho místico, que não tem propriamente perigos, mas é incerto e
lento; e o que se chama o caminho alquímico, o mais difícil e o
mais perfeiro de todos, porque envolve uma transmutação da própria
personalidade que a prepara,
sem grandes riscos, antes com defesas que os outros caminhos não
têm. Quanto a «iniciação» ou não, posso dizer-lhe só isto, que
não sei se responde à sua pergunta: não pertenço a Ordem
Iniciática nenhuma. A citação, epígrafe ao meu poema Eros
e Psique,
de um trecho (traduzido, pois o Ritual é
em latim) do Ritual do Terceiro Grau da Ordem Templária de Portugal,
indica simplesmente — o que é facto — que me foi permitido
folhear os Rituais dos três primeiros graus dessa Ordem, extinta, ou
em dormência desde cerca de 1881. Se não estivesse em dormência,
eu não citaria o trecho do Ritual, pois se não devem citar
(indicando a ordem) trechos de Rituais que estão em trabalho.
Creio
assim, meu querido camarada, ter respondido, ainda com certas
incoerências, às suas perguntas. Se há outras que deseja fazer,
não hesite em fazê-las. Responderei conforme puder e o melhor que
puder. O que poderá suceder, e isso me desculpará desde já, é não
responder tão depressa.
Abraça-o
o camarada que muito o estima e admira.
Fernando
Pessoa
1935. .......................................................................................................................................................
Escritos
Íntimos, Cartas e Páginas Autobiográficas . Fernando Pessoa.
(Introdução, organização e notas de Antoónio Quadros.) Lisboa:
Publ. Europa-América, 1986.
- 199.
1ª
publ. inc. in Presença , nº 49. Coimbra: Jun. 1937
Fontes:
3) Jornal
GGN
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Apenas comentários inteligentes. Palavras chulas ou xingamentos serão deletados.