Apenas sei o que
me ensina o mestre. Embora nunca tenha visto o seu rosto, pois quando se
apresenta em seus trajes brancos, cobrem-lhe as faces e os cabelos, capuz de
mesma alvura, desconfio que o mestre seja vários, ou até um deus, que possa
mudar-se em muitos. Às vezes noto-lhe a voz estranha, em outras ocasiões,
reconheço uma que já ouvi antes, como um canto de pássaro sequestrado da
infância.
Mas esses
pequenos detalhes, que servem para distrair-me, não são coisas que valham
grandes preocupações de minha parte ou do meu povo; agradar aos deuses, esta é
a nossa finalidade. Embora eu seja um escolhido, a quem os homens devem
respeito, admiração e têm ainda – e o digo sem medo de ser arrogante - inveja,
apesar de tudo sou um servo, e é isto muito mais valioso do que um reino aqui
nesta passagem terrena. Almejo os reinos de outros mundos, mais luxuosos, mais
felizes, mais prazerosos. Meus reinos não são deste mundo! Digo sempre.
Por isso sirvo a espera das recompensas maiores.
O que mais sinto
e incomoda-me, nesta minha vida de abnegação e entrega a favor do meu povo e em
nome dos deuses, é a solidão. Sei que assim falando, vocês, na posteridade, –
para quem escrevo – acharão que vivo só, enclausurado talvez em algum templo.
Não, minha vida tem sido até cansativa, buscam-me muitos, os meus enamorados,
em minha ilha, mas a única voz que ouço, a única pessoa com quem posso
conversar é o meu mestre que tudo sabe que tudo me ensina e, apesar do seu
saber, não está sempre comigo, e nestes momentos condenam-me, ou melhor,
libertam-me, o meu destino e a minha iniciação, a calar-me, a guardar todo o
meu saber, meu poder imaginativo, para o momento certo. É quando me sinto só,
apesar de rodear-me um exército.
Todas as pessoas
que me cercam têm por função o cuidado com o meu prazer corpóreo, com minha
segurança, com a minha elevação espiritual, e são proibidas de falar-me,
dirigir-me quaisquer palavras, pois meus ouvidos são apenas depositários do saber
do mestre. Não quer o mestre, e os mestres de meu mestre, que as suas
falas, suas vozes, suas ideias e seus ensinamentos errôneos maculem o meu
espírito puro e imaculado. Por isso todos os servos são mudos. Entre
aqueles que nascem mudos, e que são destinados pelos deuses e sua corte a
servirem aos cordeiros – pois como sou cordeiro, outros já o foram e outros
serão – são escolhidos os meus servos mais próximos, para as outras funções são
selecionados, entre as famílias de meu povo, aqueles que voluntariamente terão
as suas línguas cortadas, pois o mal é o que sai da boca dos servos, do povo.
Às vezes meu
corpo sente a necessidade de prazeres e para acalmar o espírito demoníaco que
habita as carnes e aprisiona o espírito da alma, é-me servido vinho, que bebo
em grandes quantidades, misturado com água, como fazem os sábios helenos.
Às mulheres e
aos rapazes que me servem como amantes, não é permitido que vejam o meu corpo
enquanto o satisfazem, pois através dos fluidos que ele emana, nos momentos de
gozo, é possível, além de ver-se o futuro, conhecer segredos, mistérios, artes
e mágicas que só aos sacerdotes, iniciados e feiticeiros reais são permitidos
conhecer, pois há o perigo de que pessoas estranhas e inescrupulosas, com
a ciência desses mistérios, almejem poderes terrenos. Por isso essas mulheres e
homens a quem escolho pelos corpos que mais me fazem enrijecer, têm os olhos
furados. Não se pode confiar nas vendas que comumente são atadas aos mais
íntimos, entre os quais os que me banham, e que têm a morte como castigo se
ousarem observar-me.
Sou uma
oferenda, e o meu destino é ser imolado quando se fizerem vinte e um, os ciclos
de minha vida. Não temo a morte como os ignorantes, pois sou culto e iniciado
nos ritos próprios aos homens de minha casta e nos ritos exclusivos para os que
serão oferecidos em holocausto.
No dia de minha
morte porei a vestimenta mais bonita, que ainda não possuo, mas que aos poucos
indico aos artesões como desejo que seja confeccionada. Tenho diários sonhos, e
um deus que não conheço aparece-me sempre. Meu mestre crê que seja a minha nova
imagem, o mais novo deus da corte celeste que surgirá após a minha morte, após
a oferenda: a minha forma divina. Mas ao despertar desses sonhos, apenas
pequenos detalhes de suas vestes a mim são permitidos lembrar, e montando esse
enigma terei a minha indumentária no grande dia. Procurarei sorrir quando a
faca ritual penetrar em meu coração, não terei o horror estampado em minhas
faces como as donzelas e os castos rapazes de tenra idade que são sacrificados
anualmente a espera da grande oferenda.
Mas a minha vida
não é só prazeres como possa parecer essas pequenas divagações ditadas a meus
escribas, através lençóis, cortinas e outros adereços que nos separam. Antes de
tudo os ritos, a iniciação, os conhecimentos. Quererão os deuses e suas hostes
um ignorante? Dedico-me horas de estudo com meu mestre, horas cansativas de
exercícios físicos, orações e pequenas ofertas. Todo o meu tempo é regrado,
como as chuvas fertilizantes o são pelas estações. Se me detenho, em minhas
crônicas, em frivolidades, prazeres e exóticas observações, é que não ouso
revelar detalhes de minha preparação a incautos, interesseiros e aventureiros,
que por ventura viessem a ter acesso a esses sagrados manuscritos, diversão de
um futuro deus, dádiva de seu espírito alegre e bondoso aos seus adoradores.
Cansado, ordeno
a meus escribas para imergir os seus trabalhos em banha protetora para que eles
durem alguns anos a mais. Recolho-me aos meus aposentos onde me esperam o
vinho, alguns rapazes e mulheres para compartilharem de minha potestade.
Após a orgia,
vinho, sexo, gozo e cansaço. Com certeza já será noite, alta noite: durmo!
(Itárcio Ferreira)
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Outros contos de
Itárcio Ferreira:
Da primeira fase
(1988/1989):
Da segunda fase (após 2013):
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