Geraldo Vandré | Foto: Jotabe Medeiros
O
cantor e compositor que estremeceu o Maracanãzinho em 1968, não tem
luz elétrica em casa e nem acerta o relógio no horário de verão;
“ele ainda se considera um exilado”, diz biógrafo.
Por Bruno Pavan, via Brasil de Fato
Quando
se escreve o nome de Geraldo Vandré em buscadores da internet, surge
que o nome venha sucedido do termo “morreu”. Em uma época de
superexposição e de pessoas tentando de tudo para alcançar 15
minutos de fama, um cantor que não aparece mais em público só pode
ter morrido.
Trata-se,
no entanto, de uma meia verdade. Vandré criou para si uma alcunha
pouco usual: é um “ex-artista”, que vê a morte sem chorar na
pele de Geraldo Pedrosa de Araújo Dias, seu criador.
Vandré
vive, como lembra seu biógrafo Jorge Fernando dos Santos, uma vida
de desobediência. Não vota, não se apresenta em público, não tem
energia elétrica em sua casa, nem ajusta o relógio no horário de
verão. “Considera-se ainda exilado, mas é um patriota dos tempos
em que o Brasil ainda tinha esperanças”, completa.
O
psicanalista Cristian Boragan acredita que Vandré “parou” em
algum momento do passado e que nada daquilo que faz parte de uma vida
cotidiana tem sentido para ele. “O trauma funciona por repetição,
como um disco de vinil arranhado. A pessoa tenta superar o trauma
várias e várias vezes, repetindo certas situações, como as
pessoas com TOC [Transtorno Obsessivo-Compulsivo], por exemplo. O
problema é que a superação do trauma falha e a pessoa fica num
repetir eterno”, analisa.
No
ano em que o “ex-artista” completa 80 anos, indo na contramão de
seu desejo de ser esquecido, duas biografias foram lançadas para
analisar seu legado na música brasileira: "Vandré
- O homem que disse não",
de Jorge Fernando dos Santos (Geração Editorial); e "Vandré
– A canção interrompida",
de Vitor Nuzzi (Independente).
Nenhum
dois dois autores conseguiu falar com o biografado. Nuzzi disse que
chegou a ouvir a negativa da boca de Vandré, que disse “não ter
interesse nem tempo” de colaborar com o projeto. Já Santos não
quis incomodar Vandré pessoalmente, e acredita que “uma biografia
não-autorizada” é “mais confiável”.
Vandré
e Chico
Pensando
ser artista desde criança, Geraldo Vandré teve sua voz conhecido
pela maior parte do Brasil quando, em 1965, defendeu a música Sonho
de um carnaval, de
Chico Buarque, no Festival de Música Popular Brasileira, da TV
Excelsior.
Mas
os encontros mais marcantes entre Chico e Vandré foram aqueles em
que eles estavam de lados opostos do palco. As duas músicas mais
famosas de Vandré acabaram enfrentando duas músicas de Chico nas
finais dos festivais de 1966 e 1968.
O
primeiro embate foi Disparada,
de Vandré, que, na voz de Jair Rodrigues, competiu com A
banda,
de Chico. Nesse festival, os jurados deram a vitória para Chico, que
não aceitou receber o prêmio, já que considerou a música de
Vandré melhor. A organização acabou tendo que decretar empate.
Nuzzi
analisa “que os dois protagonizaram alguns dos mais belos momentos
musicais daquele período” e cita uma passagem de seu livro, em que
o jornalista Alberto Helena Júnior lembra do clima cultural da
época.
“Foi
a única vez na vida que eu vi o Brasil discutir cultura, e discutiam
mesmo: sou 'Banda' porque remete às marchinhas, a um Brasil mais
ingênuo, mais cordial. Sou 'Disparada' porque é uma nova forma de
criar música, a letra é mais complicada... Discutiam estética e
cultura, e brigavam, saía porrada, como se fosse uma disputa de
campeonato de futebol. E àquela altura a Bossa Nova já estava
ultrapassada. Havia uma música de raiz e outra olhando para a
frente”, disse Helena.
Dois
anos depois, não haveria mais espaço para a diplomacia do empate.
De acordo com Walter Clark, ex-diretor da Globo, havia ordens para
que Caminhando
– Pra não dizer que não falei das flores não
vencesse o 3o Festival
Internacional da Canção, de 1968. Já Chico se inscreveu com sua
parceria com Tom Jobim, Sabiá,
baseada na Canção
do Exílio,
do poeta Gonçalves Dias.
Caminhando:
“o auge e o fim” do compositor
“Na
minha carreira propriamente falando, houve uma mudança ali no
Maracanãzinho, foi ali que houve uma passagem do que eu fazia para
um público de teatro, 700 pessoas, no máximo 1200 pessoas, pra um
ginásio de 30 mil pessoas. Ali foi a massificação”, disse o
cantor em entrevista para a GloboNews, em
2010. Após apresentar Caminhando,
nem Vandré nem o Brasil seriam mais os mesmos.
“Foi
a crônica de uma época, escrita pelo autor enquanto assistia à
passeata dos 100 mil de cima de um edifício na Cinelândia, no Rio
de Janeiro. A partir dali, virou um hino, pois traduzia o sentimento
da nação brasileira naquele momento de luta contra a Ditadura”,
conta Santos.
O
fim do festival ilustrou ainda mais o clima e polarização cultural
do país. Na ponta da língua do público, a
combativa Caminhando perdeu
para a poética Sabiá.
O resultado foi uma estrondosa vaia, seguida de um discurso em que
Vandré pedia respeito a Tom e Chico e sacramentava: “a vida não
se resume a festivais”.
“Dizem
que foi a maior vaia que Tom já ouviu. Mas várias pessoas com que
conversei, que estavam naquela noite de setembro no Maracanãzinho,
dizem que não protestaram contra 'Sabiá', mas contra a decisão do
júri. Caminhando era
uma canção explícita, enquanto Sabiá,
talvez por sua delicadeza, não deixou clara para o público sua
mensagem também política, sobre o exílio”, explica Nuzzi.
O
que poderia ser a continuidade de uma carreira artística promissora
acabou, talvez, sendo um fardo muito pesado para o compositor. Nuzzi
aponta que a canção foi, ao mesmo tempo, “o auge e o fim de
Vandré”.
Após
o festival, o cantor passou a ser considerado inimigo do Regime
Militar e, no carnaval de 1969, com a ajuda dos amigos, saiu do país
para retornar somente em 1973. Existem pouquíssimos registros de
Vandré dessa época. “É como se houvessem apagado Vandré do
noticiário e da memória coletiva”, explicou Vitor.
A
sombra de uma palmeira que já não há
O
começo da “morte” do artista foi no episódio em que ele teve
que fugir do país. Sempre negando que tenha sido torturado
fisicamente pelos agentes da Ditadura, muitos acreditam que o
afastamento forçado de seu país foi o pior tipo de agressão que
ele poderia sofrer.
“Você
perde, de uma hora para outra, completamente a sua identidade. Os
valores do novo país são outros, o idioma é outro, a alimentação,
vestuário… Na maioria dos casos dos exilados a pessoa não pode se
preparar psicologicamente, teve que fugir e pronto”, analisou
Boragan.
Ele
voltou ao país em 1973 e prometeu, em depoimento aos militares, que
“só iria escrever canções de amor” e, desde então, não se
apresentou mais publicamente no país. Porém, rejeitando o rótulo
de antimilitarista, diz que se impôs o voto de silêncio porque o
que existe hoje no país é “cultura massificada”.
49
anos depois, Sabiá deixou
de ser a canção arquirrival, e Geraldo Pedrosa se tornou seu
personagem principal. Voltando para a “sombra de uma palmeira que
já não há” e vendo que as flores que ele insistiu tanto em
falar, já não davam, Vandré seguiu “vendo a morte sem chorar”.
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