As pulgas sonham com comprar um cão, e os
ninguéns com deixar a pobreza, que em algum dia mágico a sorte chova de
repente, que chova a boa sorte a cântaros; mas a boa sorte não chove ontem, nem
hoje, nem amanhã, nem nunca, nem uma chuvinha cai do céu da boa sorte, por mais
que os ninguéns a chamem e mesmo que a mão esquerda coce, ou se levantem com o
pé direito, ou comecem o ano mudando de vassoura.
Os ninguéns: os filhos de ninguém, os donos
de nada.
Os ninguéns: os nenhuns, correndo soltos,
morrendo a vida, fodidos e mal pagos:
Que não são, embora sejam.
Que não falam idiomas, falam dialetos.
Que não praticam religiões, praticam
superstições.
Que não fazem arte, fazem artesanato.
Que não são seres humanos, são recursos
humanos.
Que não têm cultura, têm folclore.
Que não têm cara, têm braços.
Que não têm nome, têm número.
Que não aparecem na história universal,
aparecem nas páginas policiais da imprensa local.
Os ninguéns, que custam menos do que a bala
que os mata.
— Eduardo Galeano, no livro “O livro dos
abraços”. tradução Eric Nepomuceno. Porto Alegre: L&PM, 2002