Aos Mestres, com carinho!

Aos Mestres, com carinho!
Drummond, Vinícius, Bandeira, Quintana e Mendes Campos

sexta-feira, 29 de setembro de 2017

Auto Retrato, por Marcia Denser



Paulistana, 27 anos, descendência miscelânica peninsular teuto-ítalo-meridiana. Ex-aluna de colégio de freiras. Das formandas de 66 sou a única solteira. A literatura em moda é a latino-americana, mas prefiro Júlio Cortázar, um francês. Os peixes do terceiro mundo nadam melhor fora d’água. Quando pediram para falar de mim mesma a primeira coisa que me ocorrer foi começar dizendo que nasci a 23 de maio, sob o signo frio, mercurial e dualístico de Gêmeos. Desisti. Iam pensar que estava dizendo isso porque sou mulher e às mulheres supostamente só interessam modas, novelas e putoroscópios. O que é verdade (e é mentira). Porque há uma parte de nós que jamais abandona o ordinário, o vulgar do sexo. Assim como nos homens, supostamente, a engenharia mecânica, o cinema de ação e o futebol na tevê. Nada mais comprometedor do quê falar de si próprio. Mesmo que isso seja delicioso. Escrever nada tem a ver com essas notícias que a gente lê a respeito do famoso escritor e seus gatinhos chineses, suas aquisições amorosas, duas piorreias. Nada disso. O que escrevo não são exatamente contos, são exercícios de captação de fragmentos da realidade. Imaginem uma câmera fotográfica na mão duma criança. A apreensão, em primeiro plano, de detalhes insignificantes como um dente cariado, pedaços de seios desnudos, o rendilhado rápido dum chale. Uma inocência ternamente perversa a fotografar o caos e, sem querer, revelar verdades inconfessáveis: uma objetiva inocente, que apenas registra, não julga.

A literatura resta então como o núcleo amarelado e doentio no centro da esmeralda, a sua depuração petrificada; fosforescência estagnada de um farol no fundo de um lago pantanoso, restos de licor de menta num copo de fundo falso. A literatura é como o centro de uma icterícia, vagalume morto na costura interna de uma bolsa de veludo negro, reflexo duma estrela numa poça de óleo diesel, fagulha de cuspida no dorso de um rinoceronte adormecido, resto endurecido de sêmen numa perna branca debaixo duma colcha de seda chinesa, poeira de microssulco enquanto continua tocando a música divina. Belas metáforas, não? Mas as metáforas, essas putas.

Tudo o que faço (fiz, farei) devo às minhas mutilações. Não devo ter muitas porque até hoje não realizei grande coisa (um primeiro livro, algumas antologias). Além de trabalhar oito horas por dia numa pirâmide de aço no coração da Avenida Paulista. Ou melhor, sete e quarenta. Compensado os sábados de danação e ressaca. Pertenço a uma geração cujos pais foram obscuros heróis do após-guerra. Daí o anonimato. Mulheres posam nuas sem legenda. Que melhor identificação que representar toda a espécie? As mulheres da minha geração perambulam pelo castelo em ruínas d casamento. E se possuem a chave da liberdade conferida pela pílula, nada podem fazer com ela. Deram-nos a chave, mas esqueceram de construir a porta. Nada mais inútil do que uma chave num castelo sem portas, não acham?

No mais, o amor, essa palavra tão esbelta. 


(in O Animal dos Motéis, 1981)