Paulistana, 27 anos, descendência miscelânica
peninsular teuto-ítalo-meridiana. Ex-aluna de colégio de freiras. Das formandas
de 66 sou a única solteira. A literatura em moda é a latino-americana, mas
prefiro Júlio Cortázar, um francês. Os peixes do terceiro mundo nadam melhor
fora d’água. Quando pediram para falar de mim mesma a primeira coisa que me
ocorrer foi começar dizendo que nasci a 23 de maio, sob o signo frio, mercurial
e dualístico de Gêmeos. Desisti. Iam pensar que estava dizendo isso porque sou
mulher e às mulheres supostamente só interessam modas, novelas e putoroscópios.
O que é verdade (e é mentira). Porque há uma parte de nós que jamais abandona o
ordinário, o vulgar do sexo. Assim como nos homens, supostamente, a engenharia
mecânica, o cinema de ação e o futebol na tevê. Nada mais comprometedor do quê
falar de si próprio. Mesmo que isso seja delicioso. Escrever nada tem a ver com
essas notícias que a gente lê a respeito do famoso escritor e seus gatinhos
chineses, suas aquisições amorosas, duas piorreias. Nada disso. O que escrevo
não são exatamente contos, são exercícios de captação de fragmentos da
realidade. Imaginem uma câmera fotográfica na mão duma criança. A apreensão, em
primeiro plano, de detalhes insignificantes como um dente cariado, pedaços de
seios desnudos, o rendilhado rápido dum chale. Uma inocência ternamente
perversa a fotografar o caos e, sem querer, revelar verdades inconfessáveis:
uma objetiva inocente, que apenas registra, não julga.
A literatura resta então como o núcleo amarelado
e doentio no centro da esmeralda, a sua depuração petrificada; fosforescência
estagnada de um farol no fundo de um lago pantanoso, restos de licor de menta
num copo de fundo falso. A literatura é como o centro de uma icterícia,
vagalume morto na costura interna de uma bolsa de veludo negro, reflexo duma
estrela numa poça de óleo diesel, fagulha de cuspida no dorso de um rinoceronte
adormecido, resto endurecido de sêmen numa perna branca debaixo duma colcha de
seda chinesa, poeira de microssulco enquanto continua tocando a música divina.
Belas metáforas, não? Mas as metáforas, essas putas.
Tudo o que faço (fiz, farei) devo às minhas
mutilações. Não devo ter muitas porque até hoje não realizei grande coisa (um
primeiro livro, algumas antologias). Além de trabalhar oito horas por dia numa
pirâmide de aço no coração da Avenida Paulista. Ou melhor, sete e quarenta.
Compensado os sábados de danação e ressaca. Pertenço a uma geração cujos pais
foram obscuros heróis do após-guerra. Daí o anonimato. Mulheres posam nuas sem
legenda. Que melhor identificação que representar toda a espécie? As mulheres
da minha geração perambulam pelo castelo em ruínas d casamento. E se possuem a
chave da liberdade conferida pela pílula, nada podem fazer com ela. Deram-nos a
chave, mas esqueceram de construir a porta. Nada mais inútil do que uma chave
num castelo sem portas, não acham?
No mais, o amor,
essa palavra tão esbelta.
(in O Animal dos Motéis, 1981)