Muçulmanos, judeus, mulheres, homossexuais, índios, negros, estrangeiros
e pobres: em ensaio de 2005, Eduardo Galeano discorre sobre as
diferentes faces do Demônio, descritas pela antítese de cada um desses 'anjos
do mal'. O artigo foi publicado por Le Monde Diplomatique e republicado por Le Monde
Diplomatique Montevidéu, 13-04-2015.
O Demônio é mulçumano
A experiência prova
que a ameaça do inferno é sempre mais eficaz que a promessa do Céu.
Benditos sejam os
inimigos.
Dante já sabia que Maomé era terrorista. Por
alguma razão o colocou em um dos círculos do inferno, condenado à pena de
prisão perpétua. “O vi partido”, celebrou o poeta em A Divina Comédia , “desde
a barba até a parte inferior do ventre...”. Mais de um Papa já tinham
comprovado que as hordas muçulmanas, que atormentavam a Cristandade, não eram
formadas por seres de carne e osso, eram um grande exército de demônios que
aumentava quanto mais sofria com os golpes das lanças, das espadas e dos
arcabuzes.
Hoje em dia, os mísseis fabricam muito mais inimigos que os inimigos das
entranhas. Porém, que seria de Deus, afinal de contas, sem inimigos? O medo
impera, as guerras existem para desbaratar o medo. A experiência prova que a
ameaça do inferno é sempre mais eficaz que a promessa do Céu. Benditos sejam os
inimigos. Na Idade Média, cada vez que o trono tremia, por bancarrota ou fúria
popular, os reis cristãos denunciavam o perigo muçulmano, desatavam o pânico,
lançavam uma nova Cruzada, o santo remédio. Agora, há pouco tempo, George W.
Bush foi
reeleito presidente do planeta graças o oportuno aparecimento de Bin Laden, o grande Satã do
reino, que as vésperas das eleições anunciou, pela televisão, que ia comer
todas as crianças.
Lá pelo ano de 1564, o especialista em demonologia Johann Wier teria contado os
demônios que estavam trabalhando na terra, a tempo integral, a favor da
perdição das almas cristãs. Eram sete milhões quatrocentos e nove mil cento e
vinte sete, que agiam divididos em setenta e nove legiões.
Muita água fervente
passou, depois daquele censo, debaixo das pontes do inferno. Quantos são, hoje
em dia, os enviados do reino das trevas? As artes do teatro dificultam as
contas. Estes falsos continuam usando turbantes, para ocultar seus cornos, e
longas túnicas tampam os rabos do dragão, suas asas de morcego e a bomba que
carregam debaixo do braço.
O Demônio é judeu
A colossal carnificina
organizada por Hitler culminou uma longa história de perseguição e humilhação.
Hitler não inventou nada. Há mil anos, os
judeus são os imperdoáveis assassinos de Jesus e os culpados de todas as
culpas. Como? Jesus era judeu? E judeus eram também os doze apóstolos e os
quatro evangelistas? O que você disse? Não pode ser. As verdades reveladas
estão além das dúvidas e não exigem mais evidências do que a própria
existência. As coisas são como se diz que são, e se diz porque se sabe: nas sinagogas
o Demônio dá aulas, e os judeus desde há muito se dedicam a profanar hóstias e
a envenenar águas bentas. Por causa deles aconteceram bancarrotas econômicas,
crises financeiras e derrotas dos militares; são eles que trouxeram a febre
amarela e a peste negra e todas as outras pestes.
A Inglaterra os expulsou, nenhum escapou, no ano de 1290, porém isso não
impediu Chaucer, Marlowe e Shakespeare, que nunca tinham
visto um judeu, fossem obedientes à caricatura tradicional e reproduzissem
personagens judeus segundo o modelo satânico de parasita sanguessuga e o avaro
usurário. Acusados de servir ao Maligno, estes malditos andaram durante séculos
de expulsão em expulsão e de matança em matança. Depois da Inglaterra foram
sucessivamente expulsos da França, Áustria, Espanha, Portugal e de numerosas
cidades suíças, alemães e italianos. Os reis católicos Izabel e Fernando expulsaram os judeus e
também os muçulmanos porque sujavam o sangue. Os judeus haviam vivido na
Espanha durante treze séculos. Levaram com eles as chaves de suas casas. Há
quem as guardem ainda. Nunca mais voltaram.
A colossal carnificina
organizada por Hitler culminou uma longa história de perseguição e humilhação.
A caça aos judeus tem sido sempre um esporte europeu. Agora, os palestinos, que
jamais a praticaram, pagam a culpa.
O Demônio é mulher
“Toda a bruxaria provém da luxúria
carnal, que nas mulheres é insaciável”.
O livro Malleus Maleficarum, também chamado O martelo das bruxas, recomenda o mais
ímpio exorcismo contra o demônio que tem seios e cabelos compridos.
Dois inquisidores alemães, Heinrich Kramer e Jakob
Sprenger, o
escreveram, a pedido do Papa Inocêncio VIII, para enfrentar as
conspirações demoníacas contra a Cristandade. Foi publicado pela primeira vez
em 1486 e até o final do século XVIII foi o fundamento jurídico e teológico dos
tribunais da Inquisição em vários países.
Os autores afirmavam
que as bruxas, do harém de Satanás, representavam as mulheres em estado natural:
“Toda bruxaria provém da luxúria carnal, que nas mulheres é insaciável”. E
demonstravam que “esses seres de aspecto belo, cujo contato é fétido e a
companhia mortal” encantavam os homens e os atraíam com silvos de serpentes,
rabos de escorpião, para aniquilá-los. Os autores advertiam aos incautos: “A
mulher é mais amarga que a morte. É uma armadilha. Seu coração, uma rede; e
correias, seus braços”.
Esse tratado de criminologia, que enviou milhares de mulheres às
fogueiras da Inquisição, aconselhava que todas
as suspeitas de bruxaria fossem submetidas à tortura. Se confessassem,
mereceriam o fogo. Se não confessassem também, porque só uma bruxa, fortalecida
por seu amante, o Demônio, nos conciliábulos das bruxas, poderia resistir a
semelhante suplício sem soltar a língua.
O papa Honório III sentenciara que o
sacerdócio era coisa de machos: - As mulheres não devem falar. Seus lábios têm
o estigma de Eva, que provocou a perdição dos homens.
Oito séculos depois, a Igreja Católica continua negando o púlpito às
filhas de Eva.
O mesmo pânico faz com que os muçulmanos fundamentalistas as mutilem o
sexo e lhes cubram a cara.
E o alívio pelo perigo
conjurado leva os judeus mais ortodoxos a começar o dia sussurrando: “Graças,
Senhor, por não me ter feito mulher”.
O Demônio é homossexual
Em nenhum lugar do
mundo se levou em conta os muitos homossexuais condenados ao suplício ou a
morte pelo delito de sê-lo.
Desde 1446, os homossexuais iam para a fogueira em Portugal. Desde 1497
eram queimados vivos na Espanha. O fogo era o destino merecido pelos filhos do
inferno, que surgiam do fogo.
Na América, ao contrário, os conquistadores preferiam jogá-los aos
cachorros. Vasco Núnez de Balboa, que entregou muitos deles para a refeição dos cães,
acreditava que a homossexualidade era contagiosa. Cinco séculos depois, ouvi o
Arcebispo de Montevidéu dizer o mesmo. Quando os conquistadores apontaram no
horizonte, só os astecas e os incas, em seus impérios teocráticos, castigavam a
homossexualidade com a pena de morte. Os outros americanos a toleravam e em
alguns lugares a celebravam, sem proibição ou castigo.
Essa provocação
insuportável devia desencadear a cólera divina. Do ponto de vista dos invasores,
a varíola, o sarampo e a gripe, pestes desconhecidas que matavam índios como
moscas, não vinham da Europa, mas sim do Céu. Assim, Deus castigava a
libertinagem dos índios que praticavam a anormalidade com toda a naturalidade.
Nem na Europa, nem na
América, nem em nenhum lugar do mundo se levou em conta os muitos homossexuais
condenados ao suplício ou a morte pelo delito de sê-lo. Nada sabemos dos
longínquos tempos e pouco ou nada sabemos dos tempos de agora.
Na Alemanha nazista, estes “degenerados culpados de aberrante delito
contra a natureza” eram obrigados a exibir a estrela amarela. Quantos foram
para os campos de concentração? Quantos lá morreram?
Dez mil? Cinqüenta mil? Nunca se soube. Ninguém os contou, quase ninguém os
mencionou. Tampouco se soube quantos foram os ciganos exterminados.
No dia 18 de setembro de 2002, o governo alemão e os bancos suíços
resolveram “retificar a exclusão dos homossexuais entre as vítimas do
Holocausto”. Levaram mais de meio século para corrigir essa omissão. A partir
dessa data os homossexuais que tinham sobrevivido em Auschwitz e em outros campos, se
é que ainda haja algum vivo, puderam reclamar uma indenização.
O Demônio é índio
Os conquistadores
cumpriram a missão de devolver a Deus o ouro, a prata e outras várias riquezas
que o Demônio havia usurpado.
Os conquistadores
descobriram que Satã, quando expulso da Europa, tinha encontrado refúgio na
América. Nas ilhas e nas praias do mar do Caribe, beijadas dia e noite por seus
lábios flamejantes, habitadas por seres bestiais que andavam nus, tal como o
Demônio os havia colocado no mundo, que cultuavam o sol, a terra, as montanhas,
os mananciais e outros demônios disfarçados de deuses, que chamavam de jogo ao
pecado carnal e o praticavam sem horário nem contrato, que ignoravam os dez
mandamentos e os sete sacramentos e os sete pecados capitais, que não conheciam
a palavra pecado nem temiam o inferno, que não sabiam ler nem tinham nunca
ouvido falar do direito de propriedade, nem de nenhum direito e que, como se
tudo isso fosse pouco, tinham o costume de comerem uns aos outros. E crus.
A conquista da América
foi uma longa e difícil tarefa de exorcismo. Tão arraigado estava o Demônio
nestas terras, que quando parecia que os índios se ajoelhavam devotamente ante
a Virgem, estavam na realidade adorando a serpente que ela amassava com o pé; e
quando beijavam a Cruz não estavam reconhecendo ao Filho de Deus, mas estavam
celebrando o encontro da chuva com a terra.
Os conquistadores
cumpriram a missão de devolver a Deus o ouro, a prata e outras várias riquezas
que o Demônio havia usurpado. Não foi fácil recuperar o tesouro. Ainda bem que
de vez em quando recebiam alguma pequena ajuda de lá de cima. Quando o dono do
inferno preparou uma emboscada em um desfiladeiro, para impedir a passagem dos
espanhóis em busca da prata de Cerro Rico de Potosi, um arcanjo baixou das
alturas e lhe deu uma tremenda surra.
O Demônio é negro
Supunha-se que a leitura da Bíblia podia facilitar a
viagem dos africanos do inferno para o paraíso, mas a Europa esqueceu de
ensiná-los a ler.
Como a noite, como o pecado, o negro é inimigo da luz e da inocência.
Em seu célebre livro de viagens, Marco Pólo fala dos
habitantes de Zanzibar. “Tinham uma boca muito grande, lábios muito grossos e
nariz como o de um macaco. Caminhavam nus, totalmente negros e para quem de
qualquer outra região que os visse acreditaria que eram demônios”.
Três séculos depois, na Espanha, Lúcifer, pintado de negro, trepado numa carroça em chamas, entrava nos pátios
das comédias e nos palcos das feiras. Santa Tereza de Jesus, que
viveu para combatê-lo, apesar disso nunca pode entendê-lo. Uma vez ficou ao
lado e viu “um negrinho abominável”. Outra vez ela viu que do seu corpo negro
saía uma chama vermelha, quando se sentou em cima de seu livro de orações e
queimou os textos do ofício religioso.
Uma breve história do intercâmbio entre África e Europa: durante os
séculos XVI, XVII e XVIII, a África vendia escravos e comprava fuzis. Trocava
trabalho pela violência. Os fuzis punham
ordem no caos infernal e a escravidão iniciava o caminho da
redenção. Antes de serem marcados com ferro quente, na cara e no peito, todos
os negros recebiam uma boa unção de água benta. O batismo espantava o demônio e
dava alma a esses corpos vazios. Depois, durante os séculos XIX e XX, a África
entregava ouro, diamantes, cobre, marfim, borracha e café e recebia Bíblias.
Trocava produtos por palavras. Supunha-se que a leitura da Bíblia podia
facilitar a viagem dos africanos do inferno para o paraíso, mas a Europa
esqueceu de ensiná-los a ler.
O Demônio é estrangeiro
O imigrante está
disponível para ser acusado como responsável pelo desemprego, a queda do
salário, a insegurança pública e outras temíveis desgraças.
O “culpômetro” indica que o imigrante vem
roubar-nos o emprego e o “perigosímetro” acende a luz vermelha. Se for pobre,
jovem e não for branco, o intruso, que veio de fora, está condenado, a primeira
vista, por indigência, inclinação ao tumulto ou por ter aquela pele. De
qualquer maneira, se não é pobre, nem jovem, nem escuro, deve ser mal recebido,
porque chega disposto a trabalhar o dobro em troca da metade.
O pânico diante da
perda do emprego é um dos medos mais poderosos entre todos os medos que nos
governam nestes tempos de medo. E o imigrante está sempre disponível para ser
acusado como responsável pelo desemprego, a queda do salário, a insegurança
pública e outras temíveis desgraças.
Em outros tempos, a
Europa distribuía para o mundo soldados, presos e camponeses mortos de fome.
Estes protagonistas das aventuras coloniais passaram à história como agentes
viajantes de Deus. Era a Civilização lançada nos braços da barbárie.
Agora a viagem se faz
na contramão. Os que chegam, ou tentam chegar do sul em direção ao norte, não
trazem nenhuma faca entre os dentes nem fuzil no ombro. Vêm de países que foram
oprimidos até a última gota de seu sugo e não têm a intenção de conquistar nada
além de um trabalho ou trabalhinho. Esses protagonistas das desventuras
parecem, muito mais, mensageiros do Demônio. É a barbárie que toma de assalto a
Civilização.
O Demônio é pobre
Os bens de poucos
sofrem a ameaça dos males de muitos.
Se lambem enquanto
você come, espiam enquanto você dorme: os pobres espreitam. Em cada um se
esconde um delinqüente, talvez um terrorista. Os bens de poucos sofrem a ameaça
dos males de muitos. Nada de novo. Tem sido assim desde quando os donos de tudo
não conseguem dormir e os donos de nada não conseguem comer.
Submetidas a um
acossamento durante milhares de anos, as ilhas da decência estão encurraladas
pelos turbulentos mares da vida desgraçada. Rugem as ondas sucessivas que
forçam viver em sobressalto perpétuo. Nas cidades de nosso tempo, imensos
cárceres que prendem os prisioneiros ao medo, as fortalezas dizem ser casas e
as armaduras simulam ser trajes.
Estado de sítio. Não
se distraia, não baixe a guarda, desconfie: você está estatisticamente marcado,
mais cedo ou mais tarde terá que sofrer algum assalto, seqüestro, violação ou
crime. Nos bairros malditos espreitam, ocultos, remoendo invejas, tragando
rancores, os autores de sua próxima desgraça. São vagabundos, pobres diabos,
bêbados, drogados, carne de cárcere ou bala, pessoas sem dentes, sem rumo e sem
destino.
Ninguém os aplaude,
porém os ladrões de galinha fazem o que podem imitando, modestamente, os
mestres que ensinam ao mundo as fórmulas do êxito. Ninguém os compreende, porém
eles aspiram serem cidadãos exemplares, como esses heróis de nosso tempo que violam
a terra, envenenam o ar e a água, estrangulam salários, assassinam empregos e
sequestram países.
Eduardo Galeano
No Unisinos
Eduardo Galeano
No Unisinos
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Apenas comentários inteligentes. Palavras chulas ou xingamentos serão deletados.