Aos Mestres, com carinho!

Aos Mestres, com carinho!
Drummond, Vinícius, Bandeira, Quintana e Mendes Campos

quarta-feira, 22 de junho de 2016

2000, poema de Haroldo de Campos

 
os portais do terceiro milênio
(do vestíbulo
do)

rodam sobre seus rodízios de três zeros 
 
acoplados em c a u d a de cometa 
a um dois redondo 
rodam os signos do zodíaco 
atiçando a cósmica 
esfagulhante 
tocha augural 

o princípio-esperança 
pilastra esquerda do portal 
e a moura-desespero 
pilastra à direita 
sustentam ambas 
(discordante concórdia) 
os portões que rangem 
sobre os três 
zeros esféricos 
onde o sûnya o 
vazio búdico 
esbranca 
como olho de águia 
absorto em redondos 
plenissóis: 
o olho e o astro 
se contrespelham 

um dois brônzeo 
dupla garra de gonzos 
articula os portais 
enquanto os rodízios cantam 
a música plangente dos batentes 
que se entreabrem 
no engaste dobradiço 
dos quícios bronzefúlgidos 

o anjo-esperança 
e a gárgula-desespero 
se confrontam 
no aprazado convergir do 
calendário 

ao longo do estepário 
do futuro que se entre- 
mostra vaziopleno de latentes 
acasos 
o anjo e a gárgula se defrontam 

do mais fundo 
dos séculos a voz do sábio melancólico 
soa ainda 
ressoa 
ainda 
como antes 
no entrecéu do porvir 
que sibila seu enigma: 
a voz velha do sabedor- 
-das-coisas repete 
seu refrão que o trânsito 
das centúrias só fez 
confirmar como caixa- 
-de ecos: 

"e eu me voltei 
eu / e vi / 
toda a opressão // 
que é feita / sob o 
sol /// 
e eis o choro dos oprimidos / 
e não há para eles / conforto // 
e da mão que os oprime / 
força // 
e não há para eles / 
conforto" 

o anjo-esperança recua 
em sua armadura de diamante 
a gárgula-desespero jubila 
no seu gótico esqueleto de pedra 
: "aquilo que já foi / 
é aquilo que será // 
e aquilo que será // 
e aquilo que foi feito // 
aquilo / 
se fará /// 
e não há nada de novo / 
sob o sol" - 
prossegue o-que-sabe 
por entre as névoas 
do nada 
o arcanjo-esperança 
tomado de sagrado 
furor 
flameja sua espada 
multicentelhante 
e rasga um claro 
no ob- 
nubilado 
horizonte onde 
se engendra o 
f u t u r o 

a gárgula guincha 
no seu nicho de pedra - 
na lâmina 
coruscante do gládio lê-se 
cravejado em estrelas : 
"a esperança existe 
por causa dos desesperados"


Notas do autor 

1 - O "sábio melancólico" é o autor anônimo do "Eclesiastes" ("Qohélet", em hebraico). Cito um excerto de minha recriação do capítulo 4 desse "poema sapiencial" bíblico (cf. "Qohélet / O-Que-Sabe / Eclesiastes", Perspectiva, São Paulo, 1990). 

2- Adaptei à conclusão de meu poema uma formulação extraída do ensaio de Walter Benjamin sobre "As Afinidades Eletivas", de Goethe, datado de 1925 (W.B., "Gesammelte Schriften, vol. 1, Suhrkamp, Frankfurt, 1974).