Aos Mestres, com carinho!

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Drummond, Vinícius, Bandeira, Quintana e Mendes Campos

sábado, 28 de maio de 2016

Quatro poemas de Lívia Natália


QUADRILHAS

Maria não amava João.
Apenas idolatrava seus pés escuros.
Quando João morreu,
assassinado pela PM.
Maria guardou todos os seus sapatos.


ÁGUA NEGRA

Chove muito na cidade.
No asfalto betumoso um sangue transparente,
ora de um rubro desencarnado,
ora encardido de um cinza nebuloso,
é vomitado em cólicas
por toda a parte.
Das paredes duras vaza um mais escuro que,
imagino,
seja a água mordendo as estruturas.
A água é assim:
atiçada do céu,
infinita no mar,
nômade no chão pedregoso,
presa no fundo de um poço imenso:
a água devora tudo
com seus dentes intangíveis.
                   

OSUN JANAÍNA

Descobri que, para mim,
ser mulher basta.
Para puxar véus,
levantar saias
pintar as unhas de vermelho feroz –
mesmo que seja só para dizer: para.
Ou para ver a dança des-contínua do seu corpo
sobre o meu (o meu oposto)
pelo espelho que se emancipa
das paredes deste quarto
e desta tarde delicada.
Mas sempre ser mulher basta:
posto que é inteiro e vão,
onda que bate na pedra e despedaça
apenas para voltar inteira
– afogada –
num mar de (in)diferenças
onde cada gota solitária e única
forma um discurso descomposto,
cambiante,
plural:          
mesmo quando me atiro sobre esta pedra,
que me rechaça.


ODISSEU

Seu corpo cresce em puro júbilo de ser.
E só.
Sobre a cabeça, dança uma juba arisca
alimentada pelo vento e pelos sonhos
com que embala o mundo.
Seus gestos firmes cortam o tempo,
inscrevendo,
na pele crua da memória,
seu rastro.
Sua voz,
saltando frenética sobre os átimos,
devassa as franjas silenciosas que embainham
o mundo.
Mas quando seu corpo ressona nos lençóis,
onde o espero,
é meu o seu silêncio
e a calma do depois.
É no meu corpo que escreves
sua narrativa mais primeira
e definitiva.


Lívia Natália