Aos Mestres, com carinho!

Aos Mestres, com carinho!
Drummond, Vinícius, Bandeira, Quintana e Mendes Campos

segunda-feira, 31 de outubro de 2016

O Cemitério Marinho, poema de Paul Valéry

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Esse teto tranquilo, onde andam pombas,
Palpita entre pinheiros, entre túmulos.
O meio-dia justo nele incende
O mar, o mar recomeçando sempre.
Oh, recompensa, após um pensamento,
Um longo olhar sobre a calma dos deuses!

Que lavor puro de brilhos consome
Tanto diamante de indistinta espuma
E quanta paz parece conceber-se!
Quando repousa sobre o abismo um sol,
Límpidas obras de uma eterna causa
Fulge o Tempo e o Sonho é sabedoria.

Tesouro estável, templo de Minerva,
Massa de calma e nítida reserva,
Água franzida, olho que em ti escondes
Tanto de sono sob um véu de chama,
— Ó meu silêncio!… Um edifício na alma,
Cume dourado de mil, telhas, teto!

Templo do Templo, que um suspiro exprime,
Subo a este ponto puro e me acostumo,
Todo envolto por meu olhar marinho.
E como aos deuses dádiva suprema,
O resplendor solar sereno esparze
Na altitude um desprezo soberano.

Como em prazer o fruto se desfaz,
Como em delícia muda sua ausência
Na boca onde perece sua forma,
Aqui aspiro meu futuro fumo,
Quando o céu canta à alma consumida
A mudança das margens em rumor.

(Trecho) 

Tradução de Darcy Damasceno

Vídeo mostra como os animais sofrem nas mãos dos humanos

Robert Johnson - "Love In Vain"

domingo, 30 de outubro de 2016

Tem Gente Fome, de Solano Trindade

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Nos vídeos, "Tem Gente Com Fome"  interpretados por Ney Matogrosso e Raquel Trindade
"Solano Trindade foi cidadão politizado e apontou problemas de desigualdade e injustiça na vida social brasileira. No debate da questão racial no país, tornou-se precursor. Ao longo da vida se envolveu com a poesia, as artes plásticas, o teatro e o folclore. Mas foi, sobretudo, o poeta do povo.Mas, por causa desta música, em 1944, Solano foi preso e teve o livro “Poemas de uma Vida Simples” apreendido. Além disso, em 1964, um dos seus quatro filhos, Francisco Solano, morreu numa prisão da ditadura militar. Com a arte e o artesanato que se espalhavam pelas ruas, a cidade ganhou outros contornos e deu origem ao novo nome do lugar, que passou a ser conhecido como Embu das Artes."

 TEM GENTE COM FOME (Solano Trindade)
Trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome
Piiiiii
Estação de Caxias
de novo a dizer
de novo a correr
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome
Vigário Geral
Lucas
Cordovil
Brás de Pina
Penha Circular
Estação da Penha
Olaria
Ramos
Bom Sucesso
Carlos Chagas
Triagem, Mauá
trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome
Tantas caras tristes
querendo chegar
em algum destino
em algum lugar
Trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome
Só nas estações
quando vai parando
lentamente começa a dizer
se tem gente com fome 
dá de comer
se tem gente com fome
dá de comer
se tem gente com fome
dá de comer
Mas o freio de ar
todo autoritário
manda o trem calar
Psiuuuuuuuuuuu

Contextualização da obra
Francisco Solano Trindade (1908 – 1974) foi poeta, folclorista, pintor, ator, teatrólogo e cineasta e sua obra é de importância fundamental para nosso país. Seu talento em tantas áreas esteve sempre voltado à luta contra o racismo e ao estudo e difusão da cultura afro-brasileira.
Ajudou a organizar o I Congresso Afro Brasileiro, ocorrido em 1934 Recife e participou ativamente do seguinte em 1936, em Salvador, além de fundar a Frente Negra Pernambucana e o Centro de Cultura Afro Brasileiro, também no Recife. Na década de residiu no Rio de Janeiro e posteriormente em São Paulo, onde criou raízes e entrou para a história do Município de Embu das Artes.
Entre suas publicações mais importantes estão: Poemas de uma vida simples 1944, Rio de Janeiro, e Cantares do Meu povo 1963, São Paulo, além de uma antologia chamada Poemas Antológicos lançada em 2008 e ilustrada por sua filha Raquel Trindade. O poema apresentado“Tem gente com fome” é de seu primeiro livro (e está presente também na coletânea) e sempre despertou a ira dos dominantes. Fez com que livros fossem recolhidos na década de quarenta quando virou música, interpretada pelo grupo “Secos e Molhados” em 1975, foi proibida pela censura. Posteriormente, Ney Matogrosso a resgatou no disco “Seu tipo” em 1980.
Um de seus maiores méritos enquanto poeta foi escrever sobre os sentimentos do povo de forma simples e direta. Por onde passou, Solano incentivou e ajudou a construir inúmeras iniciativas culturais e políticas e, portanto, é possível aproximar-se bastante de seu legado. Toda a sua trajetória e produção artística merecem estudos mais aprofundados e ampla divulgação.
Temas relevantes
O poema se utiliza do trajeto que o trem realiza pelos subúrbios do Rio de Janeiro ao sair da Estação Leopoldina em direção à Estação Mauá. O que chama a atenção nesse trajeto ferroviário? A desigualdade social estampada no rosto de seus passageiras, no cenário desolador que se vê pela janela, nas precárias condições que possui o trem que carrega a força de trabalho da nossa sociedade.
Através da aliteração, o poeta dá voz a esse retrato, imprimindo ritmo aos versos através das sonoridades características do trem. Nos cinco primeiros versos o autor descreve o cenário que representa as carências da população (“tem gente com fome”) e ao citar o nome de todas as estações sinaliza para a amplitude do problema. Nos dois versos finais indica que há um clamor por justiça, que pode representar o desenvolvimento da consciência desse trabalhador explorado ao refletir sobre esse cenário (“se tem gente com fome, dá de comer”). Porém ao final do trajeto, esse desenvolvimento é interrompido pelo “freio de ar” que “todo autoritário manda o trem calar”, clara alusão a todo o aparato repressivo dominante e possivelmente a todas as formas de dominação, que não só a repressão.
A última estrofe não necessariamente sentencia o destino daqueles que vivem esta cotidianidade que parece não ter fim. O trem, sempre em movimento, voltará à Leopoldina e passará novamente pelo cenário descrito e o trabalhador em algum momento poderá fazer o trem prosseguir por novos trilhos, sem freios rumo à libertação de fato do povo explorado.
Ficha técnica
Poema: Tem gente com fome
Livro: Poemas antológicos, Nova Alexandria, 2008
Autor: Solano Trindade
Ilustrações: Raquel Trindade

"(...) Opiniões sobre a obra de Solano Trindade:
Carlos Drumond de Andrade, em carta a Solano, 02/12/1944: "A leitura dos seus versos deu-me confiança no poeta que é capaz de escrever Poema do Homem e O Canto dos Palmares. Há nesses versos uma força natural e uma voz individual, rica e ardente, que se confunde com a voz coletiva."
Roger Bastides, sociólogo e escritor francês, viveu no Brasil entre 1938-1954, autor de "A Poesia Afro-Brasileira", tradutor de "Casa Grande & Senzala" para o francês: "O senhor faz dos seus versos uma arma, um toque de clarim, que desperta as energias, levanta os corações, combate por um mundo melhor."
Darcy Ribeiro, no livro "Aos Trancos e Barrancos - Como o Brasil deu no que deu", 1985: "O Teatro Experimental do Negro funcionou como um núcleo ativo de conscientização dos negros, para assumirem orgulhosamente sua identidade e lutar contra a discriminação".(...)"
Aqui o texto na íntegra,  contendo vídeos

sábado, 29 de outubro de 2016

A TENTAÇÃO NEOLIBERAL

Foto do perfil de Mariana Lima de Almeida

Cedo ou tarde a verdade aparece
Cedo ou tarde ela te assalta
Num meio dia no meio da sala
Entre tantas notícias e bobagens.

No meio do quase nada
Entre estúpidas flores amarelas
A verdade emerge e te enlaça
Inútil resistir ou fugir dela
Inútil retê-la.

Ela tem vontade própria
Como um escorpião acuado
Aguarda à sombra
Silenciosa e imóvel
À hora exata do bote.

Ela morde e suga
Seu sangue falso
Que rouba a alegria
E mata a vida de quem vive.

A verdade, poema de Paulo Pignanelli

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Mataremos quase todos de doença e fome
alguns no entanto morrerão ignorantes
alimentados mas ignorantes

Destes uma boa quantidade
se matarão
uns aos outros
por ódio sem outra razão

Outros pasmos não terão
tempo de perguntar a deus
por quê?

A arte de Uwe Ommer - "Black Ladies" (3)






Bobby McFerrin - "Ave Maria"

sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Sei que estou velho e ultrapassado...

Irmãs gêmeas?


Foto: Miguel Colaço

Modelo: Lídia Carolina

Latinoamérica, poema de Marcus Accioly

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Round 22 

Fórceps


madre América minha (minha madre)

às vezes no teu seio (quando sofro

por coragem não ter de ser covarde)

ânsias sinto de estar ou ser de novo

no teu útero (sim) na intimidade

capaz de me fechar (como em um ovo

dentro de ti) por isso é natural

que me coloque em posição fetal 



(sim) encolho meu peito até os joelhos

puxados com os dois braços (sem falar

vou boiando das chamas dos teus pêlos

ao teu ventre redondo feito o mar)

nado em tua placenta onde os vermelhos

lençóis do sangue tentam me dobrar

em suas dobras (madre) e sou o filho

que religa o cordão ao próprio umbigo 



(ai quando o pensamento cega o sonho

ou o sonho quer mentalizar o mundo)

quando eu me reconheço tão estranho

que fecho os olhos para ver mais fundo

(madre minha) eu me curvo enquanto ponho

toda a cabeça em tua vulva e afundo

(à semelhança do avestruz) por dentro

do fim e do começo do teu centro 



(em ti posso esconder-me de mim mesmo)

sou o menino que era no teu colo

(mas perdeu a saúde e está enfermo

de tanto suplicar o teu consolo)

eu quero ser (mesmo empurrado a ferro

como um bolo-de-carne ou feito um rolo-

de-sangue) igual a um feto que se esforce

a entrar em ti sob invertido fórceps


Remédios

RIO-PARIS-RIO E OS ESTRANGEIROS-EXILADOS

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Vista das cidades do Rio de Janeiro e Paris

Dentro de todo estrangeiro grita um exilado. Seja por motivo político, econômico, social ou mesmo afetivo, estrangeiros-exilados carregam a beleza e a melancolia do desterro mundo afora, peregrinos, migratórios, deixando o familiar rumo ao estranho. São heróis, anti-heróis expatriados que um dia se foram, a rodar mares e continentes.

Escrevi o romance Rio-Paris-Rio para falar desse estar-no-mundo-entre-mundos. Do ir-e-vir entre culturas. Mais precisamente daqueles que preferiram o exílio ao terror imposto por ditaduras, como a que assolou o Brasil nos anos 1960/70.

Quis pensar ficcionalmente os efeitos do autoritarismo que regeu militarmente gestos, afetos, rotinas de toda uma população, dia a dia, de forma criminosa e silenciosa. Aí incluídos os exilados. Afinal, a travessia de uma fronteira nem sempre a apagava, pelo contrário, só a realçava.

Maria e Arthur são os meus personagens (e companheiros) nessa ficção que margeia extremos, equilibrando-se entre amor/política, tropical/temperado, esquerda/extrema-direita. Inventei-os jovens, bonitos, livres, crescidos no ingênuo Rio de Janeiro pré-golpe de 1964, cada qual numa família, cada família em seu status quo. E os fiz se encontrar – e flanar – na mítica Paris, uma das mais belas cidades do mundo, a mais literária, simétrica, cenográfica. 
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Vista de Paris de Montmartre
Saint-Michel, Saint-Germain-des-Prés, Pont des Arts. Fiz os dois perambularem pelos bulevares e ruas tortas que levam ao Sena, revolucionados, um no corpo do outro. Corpo-cidade, corpo-exílio. Na arrogância de suas juventudes, Maria e Arthur dão o passado (infância, família, ditadura) como enterrado e passam a fazer de um o continente do outro, fora de toda cartografia, de toda política.

O tempo, no entanto, passa. E eles aos poucos se dividem entre a explosão de liberdade do movimento de Maio de 68, que vivem intensamente ao lado dos estudantes franceses, e a repressão no Brasil, que nunca deixou de assombrá-los. Porque ditaduras são assim, totalitárias, pegajosas, ainda que à distância de um ou dois oceanos.

Nesse exercício de escrever sobre o estrangeiro, contei com a minha própria vivência, já que fui eu mesma estrangeira (e em Paris). Trilhei cada pedaço de rua descrito no romance. Frequentei cafés e bibliotecas que meus personagens um dia frequentariam. Fiz um pós-doutorado em literatura na mesma Sorbonne onde Maria estudaria filosofia. Escolhi um bonito prédio na rua Cujas, no Quartier Latin, onde Maria e Arthur pudessem morar. E sempre que eu passava pelo edifício, espichava o olhar até o sexto andar, a tempo de vê-los na janela, cigarro na boca, fumando suas alegrias e angústias.

Esse exercício de transpor a cidade do início do século XXI para a dos anos 1960/70 me deu por muitos anos a sensação de flanar por cidades superpostas, a real e a ficcional, caminhando num espaço e num tempo só meu – que dividiria com o leitor, um dia, no instante da leitura. Isso só foi possível por Paris ser uma cidade que pouco muda, num país que pouco muda, resistente, apegado aos seus monumentos, tradições, às suas cores pastel. Aliás, somente graças a todo um histórico de resistências, ainda temos Paris. 
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Vista de Montmartre e Basílica Sacré-Cœur ao fundo
Isso não faz desse romance uma autoficção, bien entendu. A história de Maria e Arthur é ficção pura, mas flerta com a autoficção O minotauro, de Jorge Bastos, que li há muitos anos, de uma verdade e de uma estética fascinantes. Trazia um tanto da efervescência da época, daquela juventude capaz de mudar tudo o que até então se pensava como juventude.

Gostaria de ter sido jovem como Maria e Arthur naqueles anos, mas não. Quando nasci, o Brasil já era governado por militares e passei a infância numa bolha de alienação. Com o medo imposto à população, a censura à imprensa e o boicote a toda forma de arte minimamente reflexiva, eu assistia a desenhos animados com heróis japoneses bizarros na hora do almoço e novelas alienantes na hora do jantar.

Lembro-me principalmente do quanto odiava Educação Moral e Cívica, matéria dada na escola num tom de lição de moral patriótica sob ordem militar. Nada aprendia com aquelas aulas, ao contrário de outras que me estimulavam a inteligência. Ainda que ignorasse o que acontecia ao redor, desconfiava.

Somente quando acordei para a adolescência, vi um dia, numa banca de jornal, uma revista que estampava a foto do jornalista Vladimir Herzog enforcado numa cela. Foi quando soube do assassinato de brasileiros que ousaram resistir. Tive muita vergonha, por mim, por todos nós. 
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Elementos da capa de Rio-Paris-Rio
Com o tempo vieram mais informações. Presos eram torturados, presas eram estupradas por representantes do mesmo governo que me dava lição de Moral e Cívica. A cada relato, eu ficava cada vez mais grata a todos os que resistiram, de uma forma ou de outra.
Muito já se escreveu sobre o período da ditadura, não faltando ótimos livros que li e reli numa pesquisa incansável. Na França, consultei todo tipo de arquivo até exaurir o tema Maio de 68.
Mas ficção é ficção. No final das contas, Rio-Paris-Rio traz uns 2% a 3% de toda essa pesquisa. Não se trata, portanto, de um romance sobre a ditadura, sendo esta um pano de fundo. Mais do que um mero pano de fundo, um espectro, que está em tudo, aqui e ali, no Rio e em Paris, nos genes e corpos dos personagens, sem que se deem conta. Um espectro tão sutil quanto a Moral e Cívica que tentaram me impor goela abaixo na escola e que, desobediente, não aprendi. Pelo contrário, escrevi Rio-Paris-Rio, livro provavelmente iniciado naquelas aulas, naquele colégio, quando a ditadura regia meus gestos, afetos, rotinas, e de alguma forma eu já resistia.

Luciana Hidalgo é escritora e  doutora em Literatura Comparada (Uerj), com pós-doutorado na Université de la Sorbonne Nouvelle (Paris 3), na França, onde morou durante vários anos.

Grandes escritores & maconha (3)

(O astrônomo e escritor Carl Sagan: “Não esqueça, nada de cartazes no espaço”)

Minha experiência com a cannabis melhorou muito minha apreciação da arte, um tema que nunca pude apreciar antes. O entendimento do propósito do artista, que eu obtenho quando estou chapado, algumas vezes continua quando estou de cara. Esta é uma das muitas fronteiras humanas que a cannabis me ajudou a transpor. Tem também algumas sacadas relacionadas à arte –eu não sei se elas são verdadeiras ou falsas, mas foram muito divertidas de formular. Por exemplo: passei algum tempo doidão apreciando o trabalho do surrealista belga (na verdade francês) YvesTanguy. Alguns anos mais tarde, ao emergir depois de um longo mergulho no Caribe, afundei exausto na praia formada pela erosão de um recife de coral nas proximidades. Examinando à toa os fragmentos arqueados de coral em tons pastel que formavam a praia, vi diante de mim uma pintura de Tanguy. Talvez ele tenha visitado uma praia assim na infância.” (leia o texto completo de Sagan sobre a maconha aqui. Em inglês.)