Aos Mestres, com carinho!

Aos Mestres, com carinho!
Drummond, Vinícius, Bandeira, Quintana e Mendes Campos

domingo, 31 de agosto de 2014

A linguagem da sedução do nazismo em "Hitler's Hit Parade"


Por Wilson Roberto Vieira Ferreira, encontrei no excelente CINEMA SECRETO: CINEGNOSE

Quando assistimos ao documentário “Hitler’s Hit Parade” (2005) somos assombrados por uma estranha sensação de atualidade: uma sucessão de imagens de alta qualidade das décadas de 1930-40 de clipes de filmes de propaganda, desenhos animados, filmes musicais e vídeos caseiros que demonstram como a estratégia de comunicação Nazi criou as bases da moderna Publicidade e da indústria do entretenimento. Sem fazer comentários e apresentando apenas as imagens da época, o documentário mostra como o mal foi banalizado através de uma estética kitsch repleta de estereótipos de felicidade (mais tarde imitados pela sociedade de consumo dos EUA e irradiado para todo o mundo), a estetização e erotização da política por meio de celebridades, modelos sensuais e a fetichização dos uniformes. O documentário sugere que o nazismo não morreu - se transfigurou na moderna linguagem midiática.

Quando pensamos em documentários sobre o nazismo, vem a nossas mentes imagens impactantes do holocausto, trilhas musicais marciais, soldados em marcha e a figura de Hitler como um orador enlouquecido nos congressos do Partido Nacional Socialista.

Bem diferente, durante pouco mais de uma hora, Oliver Axer e Suzanne Benzer nos apresenta no documentário Hitler’s Hit Parade uma surpreendente visão do fenômeno nazi, uma catástrofe política que parece se originar de uma cultura pop, de um universo paralelo estranhamente reconhecível, cujo aspecto assustador é a sua alegre normalidade – artistas cantando em shows exuberantes, enérgicos números de dança, coristas sensuais sapateando e namorados em jogos amorosos surpreendentemente avançados para os costumes da época.



Dividido em seções como “Nova Vida” e “Sob a proteção da Noite”, os cineastas apresentam fragmentos da vida cotidiana alemã, um compêndio de clipes de filmes de propaganda, anúncios, desenhos animados, noticiários, musicais e filmes caseiros. Famílias felizes fazem seus piqueniques ao lado de modernas autobahnen (as highways alemãs) enquanto observam zepelins em cor prata, identificados pela suástica, flutuando em céus de azul profundo, pessoas reúnem-se em locais públicos para assistir televisão, mulheres bonitas experimentam meia-calça, artistas cantam e dançam e os líderes políticos exibem modelos em escala do mundo utópico que estava por vir.

Esses clipes de arquivos da década de 1930-40 podem facilmente ser confundidos com imagens do filme Isso é Hollywood (That’s Entertainment, 1974 – compilação de filmes musicais na comemoração dos 50 anos da MGM) com o mundo singular da fantasia cinematográfica, intercaladas com algumas cenas da realidade cotidiana, com crianças sorridentes e músicas com letras cheias de sentimentos nobres, saudades e desencontros amorosos.

A banalização do mal


Hitler’s Hit Parade foi estruturado para aproveitar ao máximo um sentimento estranho e mal-assombrado de atualidade para os espectadores: não há narração, nenhuma explicação – apenas os próprios cânticos que são anunciados com títulos estilizados. A dupla de cineastas não quis fazer um documentários detalhista e cronológico da cultura popular nazista (seus estúdios de cinema, distribuidores e artistas). Em vez disso, através de uma sedutora colagem de clipes pretenderam ilustrar o famoso diagnóstico da banalidade do mal da filósofa Hannah Arendt ao revelar facetas que foram esquecidas – recordamos o Reich de Hitler como um catástrofe histórica sem precedentes, mas Hitler’s Hit Parade sugere que os cidadãos alemães e suas distorções morais foram tão banalizados como uma ida ao cinema local ou uma canção popular no rádio.

Mesmo quando a realidade da guerra irrompia na normalidade cotidiana (soldados retornando da guerra com pernas amputadas e blecautes), tudo era neutralizado pelo otimismo da propaganda e de um discurso da superação semelhante à cultura atual de autoajuda: exemplos de superação de soldados com pernas mecânicas que se transformam em atletas, a temperança dos alemães que mantem a rotina na escuridão como se nada estivesse acontecendo.

Suásticas e uniformes da gestapo se integram nos cenários do dia-a-dia numa estranha normalidade, para o nosso olhar atual. A estigmatização dos judeus nos desenhos animados, lindas mulheres fazendo “sig-heil” e corpos de soldados alemães mortos rodeados de moscas fazem um caleidoscópio que lembra o atual efeito zapping do telespectador que confortavelmente na sua poltrona vê o desfile de imagens de morte e diversão na TV.

Uma estranha sensação de atualidade


A virtude de Hitler’s Hit Parade é mostrar como o Nazismo foi a base da moderna publicidade e propaganda e da indústria do entretenimento. O documentário faz lembrar a célebre frase do filósofo Theodor Adorno: “A humanidade preparou-se séculos para Victor Mature e Mickey Rooney”, dois atores canastrões da era de ouro de Hollywood. Parece que séculos de filosofia e sofisticação cultural preparam terreno para as suas próprias negações: a propaganda, a cultura kitsch e a banalização do mal.

Ao contrário dos estados terroristas modernos, as bases da cultura alemã estavam na sofisticada teatralidade, na influência dos artistas de Berlim em suas diferentes vertentes do modernismo e na vanguarda artística e intelectual da escola de artes plásticas da Bauhaus. Porém, ironicamente, como sugere Adorno, preparam o terreno para a propaganda e a estética kitsch: o apreço de Hitler à pintura decorativa, a canastrice dos cantores e atores dos filmes de propaganda, os sorrisos com maçãs do rosto avermelhadas que mais tarde seriam o modelo de felicidade estereotipada da publicidade norte-americana, o otimismo místico por futuros utópicos representados por maquetes dos clipes de propaganda. Tudo isso preparou o terreno da moderna sociedade de consumo. 

A estética Kitsch


Certa vez o escritor austríaco modernista Hermann Broch definiu a estética kitsch como “o mal com um sistema artístico de valores”. Talvez na cultura kitsch devamos buscar as origens da “banalidade do Mal” de Hanna Arendt. Por exemplo, o documentário mostra diversos filmes de propaganda onde Hitler era promovido como uma celebridade, ao invés de líder político: Hitler com seus cães na sua casa de campo, brincando com crianças, flagrantes dele ajeitando delicadamente o cabelo antes de um comício etc. E o idêntico script não só da propaganda política atual, como da promoção de celebridades em revistas comoCaras ou em programas televisivos como TV Fama ou Estrelas.

A estetização inédita dos políticos como celebridades iniciada pela sedutora linguagem nazista banalizaria todo o mal e o horror do cotidiano que se seguiu: a celebridade e seria a prova de que todos nós poderíamos um dia vencer, e que as desgraças da vida seriam apenas obstáculos para tornar a nossa vitória ainda mais doce... Essa é a base ideológica de todo o otimismo fetichista e místico (o imaginário da autoajuda e da suposta força do pensamento positivo) que animaria mais tarde a indústria do entretenimento e a sociedade de consumo.

Se você perdeu uma perna na guerra, a maravilhosa ciência nazi está aí para te dar uma perna mecânica novinha em folha... isso não é nada. É apenas um degrau para a vitória!...

A sensualidade nazi


Outro ponto importante no documentário Hitler’s Parade, e que cria um mal estar de atualidade, é a fetichização e erotização da guerra e da política, lembrando a atual erotização de bens e serviços feita pela publicidade.

Das pinups nazis que vendiam a beleza e superioridade da raça ariana, cantando e rebolando em eróticos números musicais, até a evidente fetichização dos uniformes nazistas (não é à toa que até hoje são objetos não só de culto, mas também de apetrecho erótico sadomasoquista) percebe-se a até então inédita erotização generalizada de bens e ideias pela propaganda.

Sob o pretexto do culto ao corpo saldável de uma nação que seria a base da futura super-raça (as primeiras campanhas sistemáticas anti-tabaco foram nazistas), estava na verdade a estratégia de erotização generalizada como isca de sedução política.

Vemos no documentário diversos clipes de jovens atléticos em trajes sumários praticando atletismo, danças artísticas e coreografias sincronizadas. Somado a filmes O Terceiro Reich deveria ser sensual, atraente, erótico, sob o álibi da saúde e da raça superiora.

O que faz lembrar o cínico final do filme de Kubrick Dr. Fantástico (Dr. Strangelove, 1964): com a bomba do juízo final próxima de ser detonada, o Dr. Fantástico (um nazista enrustido) planeja como a humanidade sobreviverá ao holocausto nuclear. “Em cavernas subterrâneas”, diz ele, onde o número de mulheres deverá ser superior ao de homens. Cada homem teria várias mulheres para que a taxa de natalidade fosse alta. E as mulheres escolhidas, claro, seriam aquelas como “melhores atributos reprodutivos”. Os militares ouvem o Dr. Fantástico com olhares fascinados: finalmente poderão trair suas mulheres sem culpa... O fim do mundo erotizado por um nazista: tudo, afinal, tem seu lado bom...



Do Terceiro Reich à erotização generalizada de bens e serviços (da mulher gostosa ao lado de uma Ferrari à voz sensual do sistema de som de um metrô) há uma evidente linha de continuidade, como sugere o documentário Hitler’s Hit Parade. Não só o nazismo não morreu como ele se transfigurou na indústria publicitária e de entretenimento. Talvez estejamos na mesma situação do alemão comum dos anos 30-40 documentado pelo filme: imersos no presente, só vamos ter consciência de tudo que aconteceu depois da catástrofe.

Ficha Técnica


Título: Hitler’s Hit Parade
Diretor: Oliver Axer e Susanne Benze
Roteiro: Oliver Axer e Susanne Benze
Produção: C. Cay Wesnigk Film
Distribuição: Arte
Ano: 2005
País: Alemanha


Postagens Relacionadas



Documentário completo: http://onlinefilm.org/en_EN/film/310 com legendas em inglês.

terça-feira, 26 de agosto de 2014

VIA LÁTCEA




Onde a noite esquivou-se?
A tristeza é meu cão guia.
O amor, bebo-o em grandes goles com gelo.
A alienação parece ser a pílula da felicidade.
Em branco passo a compor a vida.
Desejos retesados quais cordas de um violino.
Desejei-a durante todo setembro, não a tive.
Outubro seguiu o som dos mergulhos.
Não sou nada.
Ocupo apenas os espaços esquecidos.
Silêncio.
Ninguém me ouve.
Reverbero-me em conchas e cristais.
O espaço é meu rádio.
O tempo, tenho-o de sobra, 
Mas não posso demovê-lo.

(Itárcio Ferreira)

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Jaca, os peitinhos e a galinha

Arte: Marcantonio

Por Paulo Bono, via Diversos Afins
Noite fria. Eu esperava na padaria da esquina. Olhei as horas. Precisava de um cigarro. Se pelo menos eu fumasse. Passavam das dez quando Jaca apareceu. Entrei no carro.
- E a cachaça? – Jaca disse.
- Tá aqui – eu disse.
- Tranquilo, então. Eu trouxe a galinha.
- Que galinha?
- Roque da Lua foi claro. Uma garrafa de cachaça e uma galinha.
- Porra, acho melhor deixar a galinha de fora.
- E o bode?
- Que bode, caralho?
- O bode que enterram em seu quintal?
- Ok. Cadê a galinha?
- Na mala.
- Na mala?
- Lavei o carro hoje.
- A porra vai morrer sufocada.
- Fique tranquilo. A galinha tá na dela.
Jaca era um amigo dos tempos de escola. Daqueles meninões idiotas que levavam a culpa de tudo. Seu apelido naquele tempo era peitchola, por causa dos seus peitos grandes e pontudos. Ficava puto. Hoje trabalha como segurança de loja. Acontece que eu andava numa fase daquelas. Havia deixado a velha agência, e Regina era coisa do passado. Para os diretores de criação, eu não tinha o menor talento. As mulheres pensavam a mesma coisa. Nada dava certo. Sem dinheiro, sem trabalho, só na punheta. Então eu estava por aí, na merda, quando encontrei Jaca. Contei minha situação. Jaca teimou que aquilo devia ser praga de Regina. Macumba, essas coisas. E disse que esse tal Roque da Lua podia me ajudar.
Quando chegamos, convenci Jaca a pegar leve com a galinha. Primeiro, daríamos uma conferida no terreno. E se fosse necessário, pegaríamos o animal. Parecia um lugar agradável. Só aquele som de tambores que arrepiava os cabelos mais crespos do meu ovo. Havia essa figura no portão de entrada. Negro, alto, jovem. Não sei o que esperava da vida, mas segurava uma vela com as duas mãos.
- Boa noite – disse Jaca – o Roque da Lua está?
O garoto não respondeu. Só olhava para frente. Reto. Ele e a porra da sua vela. Parecia um rapaz determinado. Pelo menos a não dar as boas vindas a Jaca.
- Boa noite, amigo – Jaca insistiu – Eu marquei com Roque da Lua.
Nenhuma resposta. Somente o som dos malditos tambores.
- Esse merda não vai falar nada – eu disse.
- Será que é doente?
- Quero que ele se foda.
- Ô maluco! Tá me ouvindo? EU QUERIA FALAR COM ROQUE DA LUA!
- Vamos sair daqui, caralho!
- Tô quase metendo a porra nesse moleque.
- Cuidado, esses caras manjam de capoeira.
Então surge do nada esse baixinho todo de branco segurando a porra de um cacho de bananas. Pelo jeito que rebolava, eu não tinha mesmo certeza por onde ele ia ingerir aquelas bananas.
- Jaquinha! – disse o mestre das bananas – chegou bem na hora.
- Seu Roque – disse Jaca – o garoto aqui não queria colaborar.
- Ah, esse é Tico-Tico. Tico-Tico tá de castigo. Pra aprender a se comportar.
- Esse é Paulo – disse Jaca – o amigo que lhe falei.
- Ah, o que tá desempregado e não consegue trepar.
- É, tô no cu da cobra – eu disse.
- Vem, vamos entrar, vamos entrar. Tico-Tico, você se comporte.
- Aguente firme, Tico-Tico – eu disse.
Lá dentro, havia esse pátio de terra. Cercado de uma varanda com portas e de algumas árvores. Havia também essa roda de gente. Vestidos de branco. Aquela batucada. “Cadê Roque da Lua?” – Jaca perguntou. O danadinho das bananas desapareceu do nada. Então ficamos por ali como dois imbecis. Volta e meia alguém pulava no meio da roda e arriscava alguns passinhos. Até que veio essa morena. Começou a sambar. Nova, pele escura e os dentes mais brancos da noite. Seu corpo? Bem, digamos que eu saberia o que fazer com seu corpinho num quarto escuro. A moleca dançava. Girava. Levantava a saia, ia até o chão, revelava as pernas e, por milésimos de segundo, sua calcinha. Não é por nada não, mas eu já estava de pau duro.
- Será que ela toca berimbau? – perguntei a Jaca.
- Ham?
- Tá sentindo o quê, porra?
- Calor da porra!
Então aumentaram a batucada e a morena enlouqueceu. Começou a revirar os olhos e a retorcer o corpo. Em um desses solavancos, seus peitinhos saltaram da blusa. Como se gritassem por liberdade e quisessem participar da festa. Eram peitinhos firmes, santos e loucos. Eu pensava, por que essas porras parecem mais gostosas quando estão dando santo? Aliás, o santo devia saber que havia um gordo por perto que estava doido pra cair de boca naqueles peitinhos. Eu estava em pânico. Tentava não pensar em sacanagem. Mas só conseguia pensar naquela xoxota em chamas. Nessa hora, algum escroto que gosta de ver o circo pegar fogo soltou uma galinha no meio da roda. Vou dizer uma coisa. Nunca havia visto nada mais inocente do que aquela galinha. Querendo aparecer. Caminhando para o meio da putaria. Balançando a cabeça. No ritmo dos tambores. Pelos olhinhos, estava drogada. Parecia sorrir. Quando a morena a pegou pelo pescoço e ZAP! Passou a faca no animal.
- Puta que pariu – eu disse a Jaca – esquece a galinha.
- O quê?
- Porra, você tá suando pra caralho.
- É o calor, porra.
Adivinhe quem apareceu do nada. Sim, ele mesmo. Roque da Lua. Dessa vez, sem as bananas. Mas com um charuto que não tinha mais tamanho. Dançando, se remexendo e dizendo coisas que eu não conseguia entender.
- O que é que esse porra tá falando? – perguntei a Jaca.
- Não sei. Entendi, não sei o quê Paca Capim, Paca Capim, Paca Capim…
- Jaca, você tá branco.
- Dor de cabeça…
- Porra, será que você tá dando santo?
- Eu tô tranquilo…
Enquanto isso a roda pegava fogo. A morena, os peitinhos e Roque da Lua. A galinha perdeu o melhor da festa, fazer o quê? E do nada, Roque da Lua largou o charuto e começou a dar saltos. Grandes saltos. Saltava e girava rapidamente para todos os lados, fazendo o Mestre Yoda em ação parecer uma velha tartaruga manca. Roque da Lua pulava sobre as pessoas na roda, dizendo coisas e dando gargalhadas. De repente, esse merda veio em minha direção, com os olhos ardentes. Pensei, fudeu. Só deu tempo de pensar isso mesmo, porque logo depois Roque da Lua me empurrou para o lado, apertou os peitos de Jaca e berrou com uma voz fininha “PEITCHOLA! PEITCHOLA! PEITCHOLA!”. Jaca tentou se defender empurrando Roque da Lua, que saltou para trás, dando um desses golpes de capoeira e raspando o pé no queixo do meu amigo.
Três minutos depois, Roque da Lua seguia seu show, enquanto Jaca e eu nos despedíamos de Tico-Tico e entrávamos no carro.
- FOI VOCÊ QUE DISSE! – Jaca berrava
- Vai tomar no cu, Jaca!
- FOI VOCÊ QUE DISSE!
- Como é que eu ia dizer alguma coisa? Eu nem conhecia aquele viado. Você que me trouxe aqui, porra!
- E como é que ele sabia desse negócio de peitchola?
- Sei lá, esses caras sabem tudo da nossa vida.
- Ele me pegou desprevenido.
- Mas você viu aqueles peitinhos?
- Jesus é mais forte!
Bem, o que resta contar é que passei um bom tempo ainda sem trabalho e sem mulher. Que Jaca segue sua vida como Segurança. E que a galinha na mala do carro sobreviveu.
Paulo Bono é baiano e nasceu na Lapinha, tradicional bairro do centro antigo de Salvador. Formou-se em relações públicas, é pós-graduado como roteirista, trabalha como redator publicitário e escreveu o blog de contos e crônicas Espalitando Dente durante 6 anos. Em 2013, lançou o livro de contos Espalitando (Editora Cousa). 

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

CESTA DE MAÇÃS

(Foto)


Fumo e bebo em busca do êxtase.

Nada se cria venerando Apolo.

Meu sangue é música e sexo.

Cigano, tenho por prisão o meu trabalho.

Burocrata, dignifico o capital.

Ah a grande noite caí sobre a liberdade,

E ela é tão pesada.

A burguesia não apenas fede, ofende e mata.

As morais religiosas me causam vômitos, as vezes risos.

Mas prefiro os vômitos.

Por que devo assinar um contrato de fidelidade?

Amo o meu amigo sem precisar ir ao cartório.

A monogamia é monótona pra caralho.

E na monogamia o caralho não sobe.

O tempo não para, mas o relógio sim.

Por que não bate logo as dezoito horas?

Chega de renascimentos,

Que venha rápido a imperfeição.

Raul, hoje comprei uma cesta de maçãs.

O ruim é esta sensação de culpa,

Herdada das lições de cristianismo;

Uma azia constante

E a porra da gordura no fígado.



(Itárcio Ferreira)

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Como diz Leila Diniz


REGINA AZEVEDO, POEMA


bom dia, gente. a pré-venda do meu livro “carcaça” está um sucesso, gracias, e aconselho garantir logo o seu. até quarta, por 15 reais. depois de impresso, 20. a tiragem é mínima e não vou colocar em livraria nem em canto nenhum pra vender. só internet ou na mão mesmo. mandaí um e-mail pra reginilda12@gmail.com ou uma mensagem inbox, vai.



deixar a blusa cair 
como uma pluma que desliza na película
que é um hímen que é um mundo
e mostrar a todas as americanas 
que no nordeste do brasil se sangra
todo dia
e deixar que saibam a sorte 
que é morar aqui
e ter sempre
marquinha de biquini e esse sangue
de gente que nasce no interior
do interior de tudo


Regina Azevedo

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Morre o poeta palestino Samih Al Qassim



Faleceu ontem, aos 75 anos, de câncer, na Palestina ocupada
Qassim era um dos principais poetas da resistência palestina
Eu poderia ter contado
a história do rouxinol assassinado
poderia ter contado
a história...
se não me tivessem cortado os lábios


Bilhetes de viagem

O dia que eu estou morto,
meu assassino, vasculhando os bolsos,
vai encontrar bilhetes de viagem:
Um para a paz,
um dos campos e da chuva,
e um
para a consciência da humanidade.

Caro assassino, eu lhe peço:
Não  guarda-los ou desperdiçá-los.
Use-os para viajar.

TRIBUTO A VERDADE: A MAÇÃ


sexta-feira, 15 de agosto de 2014

MANUAL DO HOMEM COMUM



Falar baixinho,
Sempre,
Pois é tão agradável aos ouvidos e a percepção.
Sorrir que é mostrar a alma ao próximo.
Dar bom dia,
O que tem a força de mil vulcões.
Olhar nos olhos e se ver no outro:
O outro vendo-se em você.
Ceder a vez,
Sempre que necessário:
A presa é inimiga da pressão.
Não ter certezas,
Pois são tantas as dúvidas
E é tão grande o ego.
Ser tolerante, uma utopia?
Sejamos teimosos,
Tentemos ao menos.
Respeitar os idosos,
Que são mais sábios que nós
E o nosso reflexo daqui a instantes.
Indignar-se com a injustiça,
Pois a ganância de poucos a alimentam.
Odiar as bombas que nada constroem.
Amar as flores que enfeitam nossos olhos.
Acariciar o cão
Com a mesma intensidade com que eles nos acariciam.
Emocionar-se com uma velha canção
Regressando ao passado
E tornando o presente dançante.
Compartilhar os livros,
Pois fechados os mesmos apodrecem
Qual o alimento não consumido.
Escutar, ouvir,
Que são sinônimos de sabedoria.
Se preciso, opinar, sem pressas, sem vaidade.
Não reter conhecimentos qual um muquirana.
Amar, até as últimas consequências, a paz,
Que tudo constrói.
Evitar,
Até a morte,
A guerra,
Que é sinônimos de mortes.
Plantar e dividir o fruto com o próximo.
Regar comunitariamente.
Colher junto com outras mãos
E assim formar uma corrente que liberta.
Soltar os pássaros das gaiolas
E vê-los bailar sob a liberdade.
Libertar os animais dos circos e zoológicos,
Que como nós odeiam as prisões.
Respeitar as diferenças:
Sempre, sempre e sempre.
Ser uno, mas divisível.
Ser paradoxal mas convergente.
Ouvir Beethoven e Spock.
Amar os gay e os não gays.
Ser feminista
Indo ao encontro afável de nossa metade mulher.
Ser negro, índio, amarelo
E buscar na miscigenação o orgulho de sermos iguais.
Ser deficiente
E na medida do possível cooperar com a sociedade.
Um pedido pessoal:
Abrir a porta dos banheiros aos cadeirantes:
Dos bares, dos hotéis, dos motéis,
Afinal também somos boêmios, viajantes e amantes.
Ler que é viajar com o pensamento.
Inventar,
Sempre buscando a excelência do servir
A quanto mais gente melhor.
Viver,
Pois não temos outra saída
E as vezes é bem gozoso.
Dar as costas as culpas e os pagamentos,
Excluindo as cobranças das religiões e dos banqueiros.
Não temer a morte
Que é o caminho reto da vida.
Não temer,
Principalmente,
A plenitude da vida em acolhimento.

(Itárcio Ferreira)

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

POUCAS COISAS BASTAM


Poucas coisas bastam:
Eu, você, um beijo, uma canção,
A noite, o vinho, o êxtase.

Poucas coisas bastam?
Sim, um amigo, um poema, saúde, educação,
O pão, a arte, a justiça.

Poucas coisas bastam:
Sorrisos, abraços, flores,
Uma mão, caminhadas, crianças, o campo.

Poucas coisas bastam?
Sim, o socialismo!

(Itárcio Ferreira)

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Explode a bomba semiótica da não-notícia

Por Wilson Roberto, via Cinema Secreto: Cinegnose

Apesar das previsões catastróficas a Copa do Mundo foi um evento bem sucedido. As grandes manifestações de rua declinaram. E as eleições se aproximam, mostrando uma oposição política cada vez mais inepta. Pressionada, a grande mídia lança a “piece de resistance” do seu arsenal de bombas semióticas, testada durante a Copa: a não-notícia, blefe turbinado pelos “efeitos de realidade” - estratégia semiótica de produzir uma sensação de verossimilhança através de imagens e sons propositalmente “sujos” que, numa televisão de alta definição, ganha uma conotação “investigativa” ou de “denúncia”. E as supostas denúncias da revista “Veja”, repercutidas de imediato pela grande mídia, sobre a “farsa da CPI da Petrobrás” são os primeiros estilhaços das não-notícias na opinião pública, apontando a necessidade urgente de combate a um novo analfabetismo: o midiático-visual.

Em plena televisão digital de alta definição se repetem em telejornais e congêneres imagens granuladas em preto e branco, câmeras com imagens desfocadas e trêmulas e infográficos toscos reproduzindo supostos diálogos telefônicos e microfones escondidos com áudios sujos e trechos inaudíveis acompanhados de legendas.

Na medida em que as eleições aproximam-se, a Copa do Mundo foi organizacionalmente bem sucedida (apesar das previsões catastróficas), as grandes manifestações de rua acabaram e a oposição política ao Governo se demonstra cada vez mais inepta, a grande mídia lança a piece de resistance do arsenal das bombas semióticas: o blefe das não-notícias, turbinadas por uma estratégia que, em tempos de paz, a televisão sempre utilizou de forma discreta e esparsa: aquilo que o semiólogo francês Roland Barthes chamava de “efeitos de realidade” – detalhes semioticamente estratégicos para produzir uma sensação de verossimilhança principalmente em telejornais – leia BARTHES, Roland, S/Z  - Um Ensaio, Edições 70, 1999.


Harmonizar detalhes autenticadores que criam uma espécie de ilusão de ótica de verdade que passa a ser mais importante do que o mero fato de que esses detalhes existam.

O teste na Copa do Mundo


Essa nova bomba semiótica começou a ser testada durante a Copa do Mundo. A grande mídia percebeu desde a partida inaugural na Arena Corinthians que o evento seria um frustrante sucesso – tanto é verdade que depois de uma semana de Copa, começou a transferir para a mídia internacional a responsabilidade pelas previsões negativas, saindo de fininho pela porta dos fundos. Por isso, começou a testar uma nova modalidade de bomba: a não- notícia.

Esforço investigativo! TV Globo
descobre cambistas no Maracanã na Copa
Quem não se lembra do telejornal do SPTV que colocou seus “parceiros” para irem de carro à Arena Corinthians em dia de jogo só para confirmar a recomendação contrária da CET. Presos no congestionamento, os “parceiros” registraram imagens em tom de “denúncia”, usando efeitos de realidade (câmeras trêmulas, imagens desfocadas, áudio picotado etc.). Ou então as imagens precárias e granuladas em PB de microcâmeras para denunciar a grande revelação nas imediações do estádio do Maracanã que comprovaria o caos da organização da Copa no Brasil: cambistas (ah, vááá!!!), figura tão comum no futebol brasileiro quanto pasteleiros nas feiras livres.

A bomba semiótica da CPI da Petrobrás


Pois agora, depois do período de testes, essa nova modalidade de bomba semiótica entra em ação para valer na última edição da Veja e repercutida, como de hábito, pela grande mídia: a “Grande Farsa da CPI da Petrobrás” – o “vazamento” das perguntas que seriam feitas pelos senadores aos investigados.

E a prova do “crime” repetida nos telejornais: imagens precárias (isso é retoricamente importante) de 2 min40 seg feitas por uma caneta espiã onde um chefe da Petrobrás e o advogado da estatal discutem estratégias dos convocados que iriam depor na CPI. E para a revista, a estratégia se consistia em soprar aos convocados perguntas que os senadores fariam.

Agora, o esforço investigativo da
"Folha": descobriu o media training
Se na escaladas das grandes manifestações de rua iniciadas em junho do ano passado presenciamos as estratégias dedissimulação da grande mídia (turbinar os acontecimentos através de estratégias de edição, montagem e angulação de textos e imagens), agora com essa nova bomba passamos a uma tática radical: a simulação ou blefe – a revista diz que possui algo que na verdade não existe.

O que a grande mídia “descobriu” foi uma prática corporativa muito comum nas grandes empresas nos seus relacionamentos com a mídia: o media training, aliás, fonte de complementação de renda para muitos jornalistas: treinar empresários e executivos a lidar com as perguntas de repórteres e saber se posicionar diante de câmeras e microfones. E mais: o media training da Petrobrás se baseou em informações públicas disponíveis no site do Senado Federal – perguntas centrais (que vão gerar outras perguntas durante as sabatinas), nomes dos convocados e documentos que servem de base para a investigação.

O sexo dos anjos e o analfabetismo midiático-visual


Esse episódio lembra também a grande “revelação” da mídia após a vitória de Lula nas eleições de 2002: a imagem do candidato na campanha foi criada por um marqueteiro chamado Duda Mendonça. Num esforço investigativo a grande mídia “descobriu” o sexo dos anjos: a existência do marketing político, tão comum na chamada democracia Ocidental quanto a existência de hóstias em igrejas e divulgou isso como uma espécie de “denúncia” de um suposto artificialismo de Lula.

A bomba semiótica da não-notícia lembra a gíria jornalística do “dar pernas prá notícia”. Mas aqui temos algo mais: uma sofisticada articulação de efeitos de realidade para a criação de impacto.

O ponto de partida do blefe dessa bomba é, como não poderia deixar de ser, a ignorância do leitor/espectador de subsetores midiáticos especializados como omídia training e o marketing político – e por isso se faz cada vez mais necessária uma espécie de alfabetização midiática-visual como disciplina curricular para além da alfabetização tradicional.

A semiótica dos efeitos de realidade


Vídeos de "denúncias" fazem metalinguagem de
programas como "Profissão Repórter" da Globo
A retórica dessas “denúncias” é semioticamente tão carregada ou canastrona que acaba expondo duas realidades: o desespero da grande mídia diante de uma oposição política tão impotente e a incapacidade de amplos setores da opinião pública em perceber o artificialismo de notícias construídas com operações linguísticas tão artificiais. Sem muito esforço analítico, de imediato se percebe os seguintes efeitos de realidade recorrentes nas notícias:

(a) em um ambiente televisivo com imagens em alta definição, telejornais com cenografias futuristas e muita metalinguagem das sofisticadas tecnologias de edição e transmissão, paradoxalmente imagens “sujas”, preto e branco, desfocadas e tremidas ganham um inesperado efeito de realismo. Algo como o movimento back to vinil no rock e o som sujo de guitarras grunge em um ambiente de produção musical sofisticado das grandes gravadoras. O realismo vem de imagens supostamente produzidas em condições precárias, difíceis, dando um tom “investigativo” ao trabalho jornalístico.

No fundo estes vídeos de denúncias são metalinguagens de programas globais como Profissão Repórter de Caco Barcelos ou Cena Aberta dirigido por Guel Arraes, Jorge Furtado e Regina Casé. São herdeiros da onda da estética reality showque domina a TV mundial contemporânea. O pesquisador norte-americano Robert Stam já descrevia como os atuais telejornais se transformavam ao narrar notícias em linguagem ficcional cinematográfica onde os apresentadores são atores (com estudadas conotações de solidez e sobriedade) e as escaladas transformam-se em teasers hitchcockianos. Mas hoje vai além dos atributos da ficção: eles são agora, literalmente, ficção – leia STAM, Robert, “O Telejornal e Seu Espectador”, em Novos Estudos Cebrap número 13, outubro, 1985, p 74-87;

A estética da denúncia-dossiê:
as transcrições de áudios
(b) A precariedade do áudio das canetas espiãs ou microcâmeras digitais confere ainda mais o tom “investigativo” ou de “denúncia”. O curioso é que mesmo quando a voz é audível, são inseridas legendas para criar um evidente efeito de realismo documental;

(c) Infográficos toscos onde didaticamente se transcrevem conversas telefônicas ou áudios de microfones escondidos com muitos chiados e ruídos (o precário como efeito de realidade). Os infográficos retoricamente dão um tom de dossiê top secret;

(d) O tom patibular ou de gravidade dos apresentadores de telejornais (por exemplo, os olhos apertados de William Bonner e as sobrancelhas erguidas da Patrícia Poeta no Jornal Nacional). O mais importante é a ambiguidade de declarações como “procurado pela reportagem o diretor fulano de tal não foi encontrado...” sugerindo o ardil do acusado em fuga. Se o acusado emite uma nota pública de resposta às supostas denúncias, como a Petrobrás o fez, ela é lida como nota impessoal. A resposta anunciada de forma burocrática evidentemente fica em desvantagem diante dos efeitos de realidade construídos pela acusação;

               (e) Pessoas dando depoimento para as câmeras e em contra-luz com a voz distorcida para impedir a identificação. Um poderoso efeito de realidade, pois dá uma conotação criminógena a qualquer suposta denúncia, além de criar a moderna estética do "jornalismo investigativo";

(f) O efeito de realidade da consonância: o Jornal Nacional cita a revistaVeja e, logo depois, outros telejornais e portais de Internet repercutem a citação do telejornal global. Isso cria o efeito de acumulação, consonância e onipresença: se todas as mídias dão a notícia, então é real. Essa estratégia semiótica é comum nos telejornais quando da cobertura de acontecimentos importantes e a citação da sua repercussão na imprensa internacional. Efeito de realidade = credibilidade.

Portanto a bomba semiótica da não-notícia revela não só o problemático analfabetismo midiático-visual do público que se torna presa fácil dos fragmentos da explosão dessa bomba, como também a natureza ilusória dos telejornais atuais: o critério de verdade foi substituído pelo de credibilidade.

O pesquisador Robert Stam já apontava que todos os telejornais são agradáveis – eles são construídos para nos dar o prazer da ficção. Não importa se as notícias são boas ou más, elas são construídas para nos proporcionar o prazer da linguagem ficcional, como em um filme ou novela – narrativas carregadas de efeitos de realidade para que o roteiro faça o espectador esquecer, nem que seja por duas horas, que o que ele vê não é real. Por isso os efeitos de realidade criam muito mais credibilidade do que a certeza de que estamos vendo a verdade dos fatos – se a TV falou, então é verdade.

Por isso, essa bomba semiótica da não-notícia, talvez a última do arsenal da grande mídia, seja a mais frágil de todas: o efeito do prazer ficcional é de curto prazo porque é especular e catártico – um prazer que se consome após a sua exibição, ainda mais em momentos em que a credibilidade da grande mídia tradicional experimenta declínio na concorrência com as mídias digitais.