Aos Mestres, com carinho!

Aos Mestres, com carinho!
Drummond, Vinícius, Bandeira, Quintana e Mendes Campos

sexta-feira, 28 de junho de 2019

GOSTO DOS AMIGOS, poema de Sebastião Alba


Gosto dos amigos
Que modelam a vida
Sem interferir muito;
Os que apenas circulam
No hálito da fala
E apõem, de leve,
Um desenho às coisas.
Mas, porque há espaços desiguais
Entre quem são
E quem eles me parecem,
O meu agrado inclina-se
Para o mais reconciliado,
Ao acordar,
Com a sua última fraqueza;
O que menos se preside à vida
E, à nossa, preside
Deixando que o consuma
O núcleo incandescente
Dum silêncio votivo
De que um fumo de incenso
Nos liberta.

Sebastião Alba

quarta-feira, 26 de junho de 2019

Soneto, poema de Mário de Andrade


Tanta lágrima hei já, senhora minha,
Derramado dos olhos sofredores,
Que se foram com elas meus ardores
E ânsia de amar que de teus dons me vinha.
Todo o pranto chorei. Todo o que eu tinha,
caiu-me ao peito cheio de esplendores,
E em vez de aí formar terras melhores,
Tornou minha alma sáfara e maninha.
E foi tal o chorar por mim vertido,
E tais as dores, tantas as tristezas
Que me arrancou do peito vossa graça,
Que de muito perder, tudo hei perdido!
Não vejo mais surpresas nas surpresas
E nem chorar sei mais, por mor desgraça!
Mário de Andrade

terça-feira, 25 de junho de 2019

Talidomida, poema de Sylvia Plath


Oh, semilua –
Semicérebro, luminosidade –
Negro, mascarado de branco,
Suas escuras
Amputações rastejam e assustam –
Aranhiças, inseguras.
Que luva
Que espécie de couro
Me protegeu
Daquela sombra –
Os botões indeléveis,
Nós nas omoplatas, os
Rostos que
Empurram para ser, arrastando
O podado
Âmnio sangrento das ausências.
Toda noite eu teço
Um espaço para o que me é dado,
Um amor
De dois olhos úmidos e um grito.
Branca secreção
Da indiferença!
Os frutos escuros giram e caem.
O vidro se espatifa,
A imagem
Foge e aborta como gotas de mercúrio.
Sylvia Plath

quarta-feira, 12 de junho de 2019

Pastoral, poema de Mauro Mota



Não disse de onde veio. Apenas veio 
quase flutuante pela madrugada. 
A flauta e um zelo musical em cada 
ovelha e em todas do seu pastoreio. 
Toca. (Para o rebanho?) A sua toada 
interrompe-se às vezes pelo meio. 
Dela não quer somente o vale cheio: 
quer levá-la mais longe. Quando nada 

houver mais dos cordeiros e dos pastos, 
do viço matinal, dos brancos rastos 
de lã, dos guizos de uma ovelha incauta, 

fique a lembrança do pastor fugace, 
que foi pastor só para que ficasse 
nas colinas a música da flauta.

Mauro Mota

terça-feira, 11 de junho de 2019

Itárcio Ferreira - "Trem da vida"

A Base de Toda Metafísica, poema de Walt Whitman


E agora, senhores,
Uma palavra eu lhes dou para permanecer em suas memórias e mentes,
Como base, e fim também, de toda metafísica.
(Também, para os alunos, o velho professor,
No final de seu curso apinhado.)
Tendo estudado o novo e o antigo, os sistemas grego e alemão,
Kant tendo estudado e exposto – Fichte e Schelling e Hegel,
Exposto o saber de Platão – e Sócrates, maior que Platão,
E maior que Sócrates buscado e exposto – Cristo divino tenho muito estudado,
Eu vejo reminiscentes hoje aqueles sistemas grego e alemão,
Vejo as filosofias todas – igrejas cristãs e princípios, vejo,
Sob Sócrates claramente vejo – e sob Cristo o divino eu vejo,
O caro amor do homem pelo seu camarada – a atração de amigo por amigo,
Do marido bem-casado e a esposa mãe de crianças e os pais,
De cidade por cidade, e terra por terra.
Walt Whitman

domingo, 9 de junho de 2019

SOCIEDADE DA VIRTUDE: "O FABULOSO TARANTULA-MAN"

Velhas Árvores, poema de Olavo Bilac



Olha estas velhas árvores, mais belas
Do que as árvores moças, mais amigas,
Tanto mais belas quanto mais antigas,
Vencedoras da idade e das procelas...

O homem, a fera e o inseto, à sombra delas
Vivem, livres da fome e de fadigas:
E em seus galhos abrigam-se as cantigas
E os amores das aves tagarelas.

Não choremos, amigo, a mocidade!
Envelheçamos rindo. Envelheçamos
Como as árvores fortes envelhecem:

Na glória de alegria e da bondade,
Agasalhando os pássaros nos ramos,
Dando sombra e consolo aos que padecem!


Olavo Bilac

quarta-feira, 5 de junho de 2019

Discreta e formosíssima Maria, poema de Gregório de Matos




Discreta e formosíssima Maria,
Enquanto estamos vendo a qualquer hora
Em tuas faces a rosada Aurora,
Em teus olhos e boca o Sol, e o Dia:
Enquanto com gentil descortesia
O ar, que fresco Adônis te namora,
Te espalha a rica trança voadora,
Quando vem passear-te pela fria:
Goza, goza da flor da mocidade,
Que o tempo trata a toda ligeireza
E imprime em toda flor sua pisada.
Ó não aguardes que a madura idade
Te converta essa flor, essa beleza,
Em terra, em cinza, em pó, em sombra, em nada.
Gregório de Matos

Saindo de casa | Uma tragicomédia

Ruy Maurity - "Pelo Sinal"

terça-feira, 4 de junho de 2019

ITINERÁRIO, por Itárcio Ferreira



O despertador do celular tocou, como sempre, às 6 horas. A mesma dificuldade de levantar toda manhã, ressaca do ansiolítico e do antidepressivo para o sono pegar.

Levanto. Lava o rosto e a boca. Adio o banho para depois do café. Primeiro um pequeno café para despertar, depois algo leve para comer.

Já não dirijo há 5 anos. O trânsito é de estressar um morto. Às 8 horas chega o rapaz que sempre me leva e me traz do trabalho.

Durante o percurso, uns 40 minutos, conversamos sobre qualquer coisa. Já somos amigos, serei seu padrinho de casamento que ainda não está marcado.

No trabalho abro a minha sala. Trabalho sozinho, mas, sempre recebo a visita de amigos.

Sala aberta, computador ligado, mais um café de máquina e mãos à obra para produzir relatórios sobre a fiscalização das contas dos governos estadual e municipais.

Servidor público. Trancado numa sala com ar condicionado. Fazendo, há mais de 20 anos, relatórios e relatórios, é fácil prever que a rotina, a repetição e a idade são fardos diários e pesadíssimos.

Enfim a hora do almoço, onde entre um colega e outro podemos jogar conversa fora e descansar para o segundo tempo.

O segundo tempo é sempre mais lento. Às 4 da tarde os aparelhos de ar condicionado são desligados, por medida de economia. Quinze minutos depois já estou suando à beça.

Novamente espero o rapaz que me traz de volta para casa. Já são 7 da noite.

Chego em casa cansado, às vezes janto, outras, apenas um banho e cama.

Dormo para acordar e de novo (o eterno retorno?) repetir meu itinerário. 

Anitta - "Zé do Caroço"

sábado, 1 de junho de 2019

Cântico, poema de Carlos Nejar

                                                             Foto de Voltaire Santos

Limarás tua esperança
até que a mó se desgaste;
mesmo sem mó, limarás
contra a sorte e o desespero.
Até que tudo te seja
mais doloroso e profundo.
Limarás sem mãos ou braços,
com o coração resoluto.
Conhecerás a esperança,
após a morte de tudo.
Carlos Nejar

Elis Regina - Conversando no Bar (Milton Nascimento & Fernando Brant)