Aos Mestres, com carinho!

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sexta-feira, 22 de maio de 2015

Günter Grass e Eduardo Galeano vão para os eternos campos de caça

Flávio Aguiar_GunterGaleano

Novamente o noticiário me leva, nestas crônicas, para longe do reino da cozinha. Saio dele para ir, desta vez, à biblioteca.
Percorro os volumes silenciosos. Eles hoje, 14 de abril de 2015, me parecem mais silenciosos do que de costume.
Livros choram?
Sim, choram. Também há momentos em que riem, outros em que ficam sisudos, pensativos, outros tem coceiras se acariciados, ainda outros fazem sexo conosco quando os apalpamos e cheiramos.
Há livros carrancudos, cheios de ódio: Minha luta, Mein Kampf, por exemplo. Outros há cheios de paixões tumultuadas, como Narciso e Golmund, de Herman Hesse.
Mas nesta minha biblioteca há alguns livros mais silenciosos do que outros.
Recolho um deles. É O tambor, de Günter Grass (em alemão Die Blechtrommel, “O tambor de lata”). Dele me sai esta preciosidade:
“Até mesmo os maus livros são livros e, portanto, são sagrados”.
Pego outro, igualmente cabisbaixo. É uma edição em espanhol, Diario de um Caracol, do mesmo Günter Grass, e leio, traduzindo em voz baixa para não perturbar demasiado o silêncio desta biblioteca:
“A melancolia deixou de ser um fenômeno individual, uma exceção. Transformou-se num privilégio de classe do trabalhador assalariado, um estado mental de massas, que se instala onde quer que a vida seja governada por índices de produtividade”.
E:
“Se o trabalho e o lazer logo se tornarem subordinados ao princípio utópico do absoluto negócio, então a utopia e a melancolia coincidirão: [veremos] a aurora de uma era sem conflitos, sempre tomada por ocupações – e sem consciência”.
Günter Grass era um homem de grande coragem. Demorou, mas confessou de motu próprio ter pertencido, na juventude, à Waffen-SS, o braço militar da odiosa organização nazista. Repudiou-a, depois. Recentemente, em plena Alemanha, publicou um poema criticando o governo de Israel (que muita gente aqui considera “intocável”, “incriticável”, como se isto existisse) pelo tratamento dispensado aos palestinos e pela posse de armas nucleares. Foi acerbamente atacado, acusaram-no de antissemitismo, coisa que ele rejeitou com veemência – e com razão.
Depois de procurar consolar estes livros acariciando-os, observo logo adiante um outro livro cabisbaixo. Perto dele, não muito longe, um outro livro, este muito grande e pesado, chora perdidamente: é a enciclopédia Latinoamericana. Não sei se ela chora por ter perdido um pai ou um filho, quem sabe um irmão. Mas tomo nas mãos o primeiro: é O livro dos abraços, de Eduardo Galeano. Na sua capa, sempre me saudava, cada vez que eu o fazia sair de seu nicho, um menino alegre tocando um tambor (seria o do Günter Grass?). Mas agora o menino me olha tristonho. Seu tambor está silente. Mas como se fora um convite, ele começa a tocar seu instrumento, naquele toque plangente, ritmado, se juntando ao silêncio das gentes, com que o surdo da escola de samba leva à última morada o passista que morreu.
Mas ouço naquele toque que irrompe na biblioteca transformada em câmara de velas ardentes um convite para abri-lo. E o faço. E leio, logo no primeiro texto:
“O mundo
Um homem da aldeia de Neguá, no litoral da Colômbia, conseguiu subir aos céus.
Quando voltou, contou. Disse que tinha contemplado, lá do alto, a vida humana. E disse que somos um mar de fogueirinhas.
– O mundo é isso – revelou –, um montão de gente, um mar de fogueirinhas.
Cada pessoa brilha com luz própria entre todas as outras. Não existem duas fogueiras iguais. Existem fogueiras grandes e fogueiras pequenas e fogueiras de todas as cores. Existe gente de fogo sereno, que nem percebe o vento, e gente de fogo louco, que enche o ar de chispas. Alguns fogos, fogos bobos, não alumiam nem queimam; mas outros incendeiam a vida com tamanha vontade que é impossível olhar para eles sem pestanejar, e quem chegar perto pega fogo”.
Tive a graça de conhecer Galeano pessoalmente. Entrevistei-o várias vezes na TV Carta Maior, durante os Fóruns Sociais Mundiais. Ele tinha um jeito peculiar de falar. No começo amarrava a cara, como se estivesse de mau humor. Quem sabe estava? Galeano detestava estrelismos, e uma câmera de TV pela frente sempre lembra, de algum modo, esta condição estelar e inoportuna. Mas logo em seguida ele cativava quem o ouvisse não só pelo brilho de seu pensamento, como pelo otimismo cauteloso, nunca panfletário, que emanava de suas palavras. Sua voz de tom medianamente grave infundia serenidade de mistura com o caráter apaixonado, ardente mesmo, de sua relação com a beleza literária e com a busca da justiça social na nossa América Latina de tantas injustiças.
Me veio à lembrança também a imagem de seu irmão de sangue (assim eles se tratavam) e de espírito, o jornalista Marcos Faerman, o Marcão da Faculdade de Direito da UFRGS e das peladas de futebol do Veludo, em Porto Alegre. O Marcão foi a Buenos Aires, onde então Galeano se exilava, entrevista-lo para o jornal Ex-, um dos alternativos de São Paulo. Lá encantou-se com a revista que Galeano dirigia, Crisis. E o Marcão editou algo parecido no Brasil, a Versus, uma das revistas mais criativas do nosso jornalismo.
Bem que eu notara que um pouco mais adiante da Latinoamericana meus exemplares sobreviventes de Versus Crisis estavam abraçados, compungidos.
Num movimento repentino, sem pensar, abri as janelas da biblioteca, para que a luz violasse aquela penumbra. A manhã berlinense me recebeu com seu gélido hálito habitual. Mas o sol entrou, e logo transformou aqueles silentes livros num enxame de vozes que, como pássaros recém-despertos, homenageassem a vida dos que partiram – há tempos, como o Marcão, ou há pouco, como Grass e Galeano.
A entrada do sol na penumbra que se dissipava me confirmou a assertiva: é impossível se aproximar destas pessoas, destes livros, destas revistas, sem pegar fogo, mesmo que serenamente.

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