Aos Mestres, com carinho!

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Drummond, Vinícius, Bandeira, Quintana e Mendes Campos

sábado, 12 de setembro de 2015

Um Baobá dos palcos, Aláfia lança seu segundo disco

AlafiaEm entrevista, banda comenta “Corpura” [confira link para ouvir] e fala sobre racismo no Brasil: “Estamos imersos no nosso tempo como cidadãos, para além da nossa profissão, e nos posicionamos contra as relações de poder”

O Baobá é dos mais importantes símbolos de uma África forte e milenar. Durante o curto período de chuvas em parte do continente, essa árvore usa seu generoso tronco [que é oco] para armazenar água e sobreviver aos tempos vastos de seca. É das poucas espécies em que quase tudo se aproveita, do fruto [rico em vitamina C], passando pelo cerne do tronco que produz fibras utilizadas em tecelagens, até as raízes que ajudam no tratamento de febre e disenteria.

A árvore africana, também chamada de “Imbondeiro” em Angola, é uma analogia importante para explicar a banda Aláfia, que chega, nesta sexta-feira (11), ao seu segundo disco, Corpura. Se você for à África e apenas passar o olho, desavisadamente, por um Baobá, admirará sua imponência e respeitará sua presença, mas nada entenderá do culto à árvore e o símbolo que representa. O mesmo olhar desavisado e desatento vai respeitar a força da banda com dez músicos e uma música que sequestram sua atenção.

Porém, se você não viver o Aláfia, não saberá que, assim como o Baobá, há inúmeros destinos e recados em cada pedacinho seu. A escolha dos instrumentos, as letras, o figurino, os ritmos, o discurso, os batuques de Alysson Bruno, sempre enamorados dos ritmos da bateria de Filipe Gomes, as vozes e corpos ritmados e cênicos de Xênia França, Jairo Pereira e Eduardo Brechó, a gaita sempre generosa e cheia de ginga de Lucas Cirillo que trinca com a cozinha do inspirado Gil Duarte, o teclado sóbrio e fintador de Fábio Leandro, a inquieta guitarra de Pipo Pegoraro e o baixo que fala alto de Gabriel Catanzaro. Nada é desperdiçado.

É preciso estar em punga para dialogar com esta banda que em nenhuma de suas músicas foge da treta, mesmo sabendo que existem mais de mil e que eles podem, ainda, não ter mil trutas. Em cada disco, uma história, um tema. No primeiro, o Aláfia nos ofereceu um estudo sobre a ancestralidade e propôs uma análise para além da “África teórica”.

Em Corpura, a banda grita que está cismada com o “prisma mestiço”, que ajuda a propagar o falso mito da democracia racial no Brasil. Enquanto suinga, Aláfia afirma o racismo como elemento estruturante da sociedade e convoca sua rapa para usar o fio que já desencapou e distribuir choques. Em quem?

A resposta está na entrevista com a digna banda Aláfia, que marcou para o dia 20 de setembro o primeiro show de apresentação do novo disco, no auditório do Ibirapuera, e anuncia, para este blogue, que encerrará a importante 8º Mostra Cultural da Cooperifa, um painel de cultura da periferia organizado pelo coletivo do poeta Sérgio Vaz, que ocorrerá no mês de outubro.

Igor Carvalho – No primeiro disco, ainda começando, vocês queriam ir para além da “África teórica”. Agora, no segundo, estão cismados com o “prisma mestiço” e convocaram a rapa para o choque. Vocês acreditam que apenas uma ruptura pode dar o norte à luta contra o racismo, revelando o falso mito da democracia racial brasileira?

Aláfia –Loka análise. No primeiro disco, usamos muitos instrumentos típicos da África d’Oeste e padrões rítmicos característicos dos usos destes instrumentos (dunun, sabar, etc…). Neste disco, usamos sempre três congas/atabaques tocando padrões dos terreiros afro-brasileiros correspondendo ao uso litúrgico das vozes destes tambores. Isto é discurso. Cada decisão estética é uma decisão política. Este disco é bem “Candomblé” e bem “Funk”. Para que soasse assim, além de partirmos destas claves tradicionais, usamos o piano como instrumento central na elaboração dos arranjos de base. Ou seja: ritmicamente nos afirmamos afinados em tonalidades que valorizem as teclas pretas. Talvez estejamos, de fato, mais voltados pra dentro e, quando se fala de Brasil, aparece de pronto o conflito entre mito e realidade no que tange à democracia racial e o convívio entre os diferentes. O tal “prisma mestiço” pelo qual pontos de vista determinantes na construção da nossa história e identidade nos enxergaram e enxergam reduz e subjulga nossas especificidades. E sobra para o nosso povo. Desbancar o mito da democracia racial é tarefa árdua e dolorosa e uma pauta histórica do movimento negro. A política de embranquecimento de São Paulo é um alicerce da cidade, mas o empretecimento que visa derrubar este monumento do terror vem de uns dias também. Ainda assim, se assumir é uma experiência pessoal do preto brasileiro. Cada um se entende e se identifica de acordo com sua vivência e, a partir deste ponto crucial, pode ou não combater o racismo. Sempre destacamos o Hip Hop nos anos 1990 que deram luz a este modo de nos vermos. A autoestima dos artistas combatentes dos dias de hoje é fruto direto da produção cultural e artística dos “linhas-de-frente” daquele tempo. Agora, estes manos têm mais de 40 anos e os artistas com cerca de trinta estão trocando com jovens de 20, que estão apetitosos para enfrentar o mesmo problema que, infelizmente, ainda perdura. Voz Ativa, dos Racionais, é de 1992 mas é uma letra atual. As demandas de enfrentamento do racismo têm nuances muito engenhosas: “cada favelado é um universo em crise…”. Talvez se reconhecer e ter orgulho sejam os primeiros passos desta caminhada. A cor no Brasil é um dado muito complexo e esta ruptura pelo viés étnico/racial é um processo.

Igor Carvalho – Temos vivido um tempo de intolerância religiosa, política, de aprofundamento do machismo, da xenofobia e do racismo. Esse disco é, também, uma resposta a esse discurso de ódio?

Aláfia – Intolerância política é odiar o povo. Dizemos que o que se chama de intolerância religiosa no Brasil é racismo. Demonização da cultura com raízes africanas. Achamos que o que tem aparecido como xenofobia também tem cara de racismo. O racismo e o machismo são ingredientes fundamentais das relações no Brasil, esta mentalidade é institucional e encontra seu lastro nos discursos de ódio. Cada uma destas relações de ódio e intolerância tem especificidades exclusivas, relativas e absolutas. Não se tratam de números. E entre estas classes também pode existir ódio e privilégio. As elites, com o pensamento quatrocentão subdesenvolvido retrógrado, não se enxergam nas imagens que o país tem refletido e querem quebrar o espelho. Não sabemos até que ponto estas relações de ódio e a intolerância aumentaram. Suas raízes estão na formação do Brasil. A grande mídia pertence às elites, bem como os cargos políticos e todo controle dos rumos da nação, suas diretrizes são determinantes na opinião pública e os discursos conservadores travestidos de pseudo-verdades partidas dali perdem os eufemismos nas redes sociais e nas ruas. Os setores conservadores da sociedade estão se sentindo ameaçados e seu desespero vem à tona mais veementemente. Esta é a definição de reacionário. Eles reagem para manter o status quo que supostamente os beneficia. O acesso e ocupação de determinados espaços e cargos, a conquista de direitos, as ações afirmativas e revoluções de comportamento se chocam com valores obsoletos mantenedores dos privilégios das elites. O embate está explícito, mas com a nossa rapa eles não são capazes. O disco responde ao discurso de ódio porque este discurso nos provoca, nos toca, nos atinge diretamente. Estamos imersos no nosso tempo como cidadãos, para além da nossa profissão, e nos posicionamos contra as relações de poder e os aparelhos que trabalham em prol da desigualdade no Brasil.

Igor Carvalho – Uma das características da banda é o resgate da ancestralidade e o compromisso estreito com a África. Nas letras, essa prática se converte, também, no uso de palavras desconhecidas dos brasileiros: Punga, Aláfia, Adinkras, Oxotokanxoxô são algumas. Como tem sido a reação do público de vocês, reconhecidamente negro em sua maioria, diante deste intercâmbio linguístico?

Aláfia – Mais uma observação interessante, mano. Notamos então que nosso léxico é afirmativo. As palavras escolhidas para uma canção são música. Cada sílaba deve fazer sentido na melodia. Nossa música trata a palavra como música mesmo em discursos muito verbais. Não teria como não ser afirmativo. Cada dado na composição é eleito com fundamento. Honestamente e felizmente, estas são palavras do nosso dia a dia. Quando compomos, acabamos usando o vocabulário de que dispomos e isso nos situa entre os nossos. Uma palavra iorubá, uma gíria, um grito de guerra… Nas conversas, nas redes, nas letras. E os nossos que não partilhavam os sentidos trazidos por estavas palavras acabam se relacionando intimamente com elas porque nós nos relacionamos intimamente com as nossas palavras.

Igor Carvalho – Desde a criação da Cooperifa [2002], movimentos culturais das periferias, através dos saraus, têm se esforçado em trazer à tona a história de um Brasil ocultado pela narrativa branca-europeia, além de promover o debate político-racial. Inúmeros artistas surgiram a partir dessa experiência. Em que medida o Aláfia é consequência ou parte desse cenário?

Aláfia – O Aláfia se criou às quartas-feiras. O Brechó e o Jairo se reuniam no final de tarde para acabar a noite na Cooperifa. Na Cooperifa, apresentamos nosso primeiro CD pro mundo. Revelamos aqui em primeira mão com toda felicidade que estaremos no encerramento da Mostra da Cooperifa este ano! Sérgio Vaz escreveu o texto que está na capa de Corpura. Somos consequência e parte deste cenário. Além da Cooperifa, temos amigos e parceiros em diversos saraus e coletivos da cidade. Isto nos honra muito. O Aláfia participa de diversos eventos dos coletivos dos movimentos culturais das periferias. Isso é muito importante para o nosso crescimento pois aprendemos muito com aqueles que vieram antes de nós e traçaram caminhos pioneiros nesta parada dura e revolucionária. Isso é uma responsabilidade. O Aláfia tem uma ligação muito grande com a literatura e o teatro. Já disseram que o show do Aláfia parece um Sarau com seus momentos. É um elogio. Hoje o Brechó apresenta o Sarau Vila Fundão com os parceiros do Narra Várzea e o Sarau do Kintal com Akins Kintê, Tubarão Dulixo e a família Monteiro.

Igor Carvalho – O disco, apesar de encontrar densidade e críticas sérias nas letras, mostra que a banda mantém seu compromisso com o suingue. Quem acompanha os shows do Aláfia sabe que eles se tornam bailes. Em algum momento vocês tiveram receio de que essas duas características não dialogassem no palco?

Aláfia – Não. O foco é o todo. Meio e mensagem. O Funk é afirmativo. Propor que a Corpura de cada um se manifeste também. Você entra no baile de verdade e o baile entra em você. Não são apelos gratuitos. Nem os clichês mais óbvios do Funk são rasos. Tudo é profundo neste ritual que compreende estado de espírito e possibilidades reais de imersão e comunicação. Se o refrão diz: “todo baile black tem um pouco de terreiro”, você está lutando pela lei 10639, contra a intolerância religiosa racista, pela ancestralidade. Não é um cavalo de Tróia – você ouve a música dançante e ganha de presente o discurso da letra. Dançar aquela dança é discurso. Propor aquele baile é mensagem. E é mensagem de resistência e luta. E na vitória, saberemos como comemorar pois lutamos dançando. Isso é Muhammad Ali. Isso é James Brown. Como diria Sérgio Vaz: é magia negra.

Foto de capa: Sté Frateschi

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